segunda-feira, 12 de novembro de 2007

LITERATURA

(Câmara Leal, Aquilino, Raul, Régio..)


O SONHO
por Raul Brandão
Chove. Cada vez vejo mais turvo, cada vez tenho mais medo. Estamos enterrados em convenções até ao pescoço: usamos as mesmas palavras, fazemos os mesmos gestos. A poeira entranhada sufoca-nos. Pega-se. Adere. Há dias em que não distingo estes seres da minha própria alma; há dias em que através de mascaras vejo outras fisionomias e, sob a impossibilidade, dor; há dias em que o céu e o inferno esperam e desesperam. Pressinto uma vida culta, a questão é fazê-la vir à supuração.

Esta manhã de chuva é um minuto no rodar infinito dos séculos e os seres que passam meras sombras. Tudo isto me pesa e pesa-me também não viver. Do fundo de mim mesmo protesto que a vida não é isto. A árvore cumpre, o bicho cumpre. Só eu me afundo soterrado em cinza.

Terei por força de me habituar à aquiescência e à regra? Crio cama e todos os dias sinto a usura da vida e os passos da morte mais fundo e mais perto.

Em lugar do uso de palavras fazia isto melhor com o emprego de dois tons - cinzento e oiro: uma nódoa que se entranha noutra nódoa. O sonho turva a vila. A primavera toca neste charco só lodo e azul:tinge-o e revolve-o. Mas o hábito de tal modo se entranhou na vida, que coabitam com o espanto e continuam a ir à repartição..Horas na torre. Mais silêncio. A morte roda aqui por perto, alguém fala: -Então como passou? Passou bem?

A princípio olham-se desconfiados, com medo uns dos outros. Sem dúvida gostam de viver mais um século, mais dois séculos, mas não sabem ainda que emprego hão de dar à existência. Não se lhes dava mesmo de morrer contanto que continuassem a jogar gamão no infinito. O que lhes custa mais a perder não é a vida, são os hábitos. A maior parte das pessoas, nasce e morre sem ter olhado a vida cara a cara.

Não se atrevem ouignoram-na: a outra existência acabou por os dominar.É que a morte regula a vida. Está sempre ao nosso lado, exerce uma influência oculta e todas as nossas acções. Entranha-se de tal maneira na existência que é metade do nosso ser. Incerteza, dúvida, remorso.... Nunca se cerra de todo a porta do sepulcro sentimos-lhe sempre frio. Agora não, a vida pertence-nos. A morte não existe, desapareceu a morte.

João Brito Sousa

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