segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

TEXTOS DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES na visão


SAUDADES DA VIDA

Voltando a Vinicius de Morais, de que terei saudades? De acordar de manhã, no verão, rodeado de cheiros que zumbem? Do mar em Vila Praia de Âncora? Dos cães ferrugentos de Colares e dos seus olhos lamentosos? Da Beira Alta? Da Beira Alta sem dúvida, e do juiz que se gabava de parar o pensamento. Dos gatos que ao fecharem os olhos cessam de existir e se transformam em almofadas de sofá?

Uma ocasião uma jornalista perguntou a Vinicius de Morais se tinha medo da morte.
O poeta respondeu com um sorriso:

- Não, minha filha. Tenho saudades da vida.

De tempos a tempos esta frase de Vinicius regressa-me à ideia. Penso: de que terei saudades, eu? Maça-me morrer porque se fica defunto muito tempo. Estou certo que o meu pai anda chateadíssimo no cemitério, sem livros, sem música, sem oportunidades para ser desagradável. O meu avô, tão diferente do filho, já deve ter feito montes de amigos por lá, todos a comerem percebes à volta de uma mesa grande. E o meu tio Eloy joga às cartas com os outros, a sorrir de satisfação quando lhe saem naipes bons. Costumava inchar na cadeira, a olhar para eles, repetindo

- Muito bem, senhores oficiais

da mesma maneira que, se as coisas corriam mal, se lamentava

- Há muitos anos que sou beleguim e nunca vi uma coisa assim

e vejo-o daqui, sem uma prega, elegantíssimo. A minha tia Madalena lê livros grossos, a minha tia Bia ensina piano e eu sinto medo de não haver papel, nem caneta, nem amigos, nem mulheres. Mas, voltando a Vinicius de Morais, de que terei saudades? De acordar de manhã, no verão, rodeado de cheiros que zumbem? Do mar em Vila Praia de Âncora? Dos cães ferrugentos de Colares e dos seus olhos lamentosos? Da Beira Alta? Da Beira Alta sem dúvida, e do juiz que se gabava de parar o pensamento. Dos gatos que ao fecharem os olhos cessam de existir e se transformam em almofadas de sofá? Da minha filha Isabel ao levá-la a um museu para lhe encher de amor pela beleza os tenros neurónios:

- Estás a gostar?

- Acho um bocado aborrecente

e não tive coragem de dizer que também acho os museus um bocado aborrecentes. Não ligava muito aos quadros, ou antes não ligava um pito aos quadros mas, na época de eu criança, havia escarradores cromados, a cada dez telas, que me interessavam muitíssimo. O problema é que nunca soube cuspir em condições. Ainda hoje não sei cuspir decentemente e, não estou a brincar, envergonho-me disso. No transporte para o liceu sempre admirei os cavalheiros que tiravam um lenço muito bem dobrado da algibeira, o abriam numa lentidão preciosa, puxavam a alma dos pulmões, depositavam-na no lenço num gorgolejo de ralo, competente, profundo, examinavam a alma com satisfação, tornavam a dobrar o lenço e faziam o resto do trajecto com ela nas calças. Talvez seja por isso que nem lenço uso: quando me acho fungoso luto comigo mesmo para não limpar o nariz na manga: a maior parte das vezes consigo. Vou ter saudades daqueles que se assoam com dignidade e estrondo e dos outros, mais comuns, detentores de um poder de síntese que, desgraçadamente, me falta. Passa uma rapariga e eles, logo

- És muita boa

numa concisão admirável, a acotevelarem um sócio distraído

- Viste?

O sócio já só apanha a rapariga ao longe mas concorda por solidariedade

- Chega o verão e descascam-se logo

e o do poder de síntese remata

- Todas umas putas

que é um ponto final que não admite acrescentos, ei-las catalogadas em definitivo, de modo que se passa aos méritos da cerveja preta que, além de acabar com a sede, é óptima para tirar nódoas, seja na camisa, seja no estômago

- Até limpam as úlceras

limpam as úlceras e amortecem o presunto:

- Se as pessoas mamassem uma preta a meio da tarde ninguém adoecia.

Segue-se a inspecção da sola do sapato

- Olha-me para a porcaria deste buraco aqui

e um discurso acerca das fragilidades e misérias do cabedal. Terei saudades disto? Do senhor da mercearia ao pé de mim vou ter de certeza. Está sempre sozinho na loja, atrás do balcão, educadíssimo. Se lhe comprar um maço de cigarros e disser

- Obrigado

responde de imediato

- Obrigado somos nós

num tom papal, que me leva a imaginá-lo cercado de criaturas invisíveis para mim mas óbvias para ele, uma multidão de espectros sobre os quais reina com benevolência. Tem sobrancelhas grossíssimas que não vão inteiramente com os seus gestos fidalgos. Nunca vi ninguém entrar na mercearia a não ser eu. Mentira: uma ocasião estava lá uma velhota que comprou dois pêssegos, a contar o dinheiro como se estivesse a despedir-se para sempre de um filho único. Lembro-me que fitou as moedas, até elas se sumirem na gaveta, numa ternura que me rasgou ao meio o coração. Depois sumiu-se numa portinha ao lado, com uma pantufa no pé esquerdo e uma bota no direito. O degrau da portinha levou-lhe um quarto de hora a escalar. O senhor da mercearia, esquecido do

- Obrigado somos nós

abriu-me os horizontes

- É a dona Esperança que já foi muito rica.

Foi muito rica e agora um pêssego, uma sopinha talvez, os restos da riqueza no prego. Terei saudades disto, também? Para citar a Isabel a vida, de tempos a tempos, é aborrecente. Será que, há séculos, a dona Esperança muito boa? Será que o marido cuspia em condições? É pouco provável porque o marido, segundo o senhor da mercearia, doutor.

- Doutor de tribunais

especificou ele com admiração

- Doutor de tribunais

escutei eu já na rua. Penso que se o meu tio Eloy visse aquilo comentava

- Há muitos anos que sou beleguim e nunca vi uma coisa assim.

Eu também não, tio, eu também não. E, já agora, quando Vinicius de Morais se referia a saudades da vida em que vida pensava ?


Recolha de

JBS

domingo, 27 de fevereiro de 2011

TEXTOS DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES na visão


INVERNO

Em Vila Praia de Âncora as gaivotas poisam na varanda do Licínio, que andou comigo em África e tem um quase museu referente à guerra na garagem. Livros, fotografias, granadas, um ror de objectos. Sabe tocar acordeão. Eu não sei tocar nada: Uma boa parte sua continua em Angola, fala da tropa no presente, conserva tanto material, para ele precioso, e para mim dores passadas que, de longe em longe, tornam

Dias gelados, tristes e feios, que apesar de curtos me parecem intermináveis. A luz acesa muito cedo sobre os móveis melancólicos, nos quais a chuva lá de fora dá ideia de tombar. Acabei um livro no mês passado e a minha cabeça, oca, demora-se no tecto. Nem uma memória nem um presságio: vazio, junto a um calorífero que frita mais do que aquece. O telefone de vez em quando: as pessoas dizem coisas. Não me dizem grande coisa. Leio, sem vontade, não importa o quê. A humidade enche-me os ossos de água parada: sinto-me uma espécie de charco com folhas podres à tona. Se chego à varanda gente apressada, automóveis a garantirem que não com os limpa-vidros, distinguem-se mal as pessoas nos carros.

- Se ao menos

penso eu, e depois penso

- Se ao menos o quê?

A agência de viagens em frente sem clientes, a merceariazinha dos paquistaneses, que mal me entendem, vazia. Os paquistaneses escuros, secretos. Conheci uma outra mercearia mais acima, de outro paquistanês, que presidia ao balcão com as suas duas mulheres. A última tarde que lá fui segredou-me

- Não se vende nada, vou fechar.

Perguntei-lhe

- Para trabalhar onde?

e a cara caiu-lhe ao comprido dos ossos:

- Não sei.

A loja desapareceu, ele e as mulheres também: mudaram-se não faço ideia para onde. Um sujeito gordo, bem disposto, de barba. Gostava de conversar com ele, gostava de saber o que lhe aconteceu. E às duas mulheres, sempre impassíveis, misteriosas. Interessei-me

- Dão-se bem uma com a outra?

e o sujeito gordo

- Têm de dar

enquanto elas me fitavam para além de mim, uma mais velha, outra mais nova, quase tão feias como este dia, chinelando em silêncio. O sujeito gordo uma barba grisalha:

- Têm de dar

e elas plantadas à espera não se percebia de quê, de lenço, opacas. Veio-me à ideia a frase de Oscar Wilde, bigamia é ter uma mulher a mais; monogamia também, e passou na rua a senhora de boina, reformada dos seguros, a morar com a mãe paralítica. Muito gorda, move-se numa majestade de navio de carga, quase deixando um rastro de gaivotas no passeio: quer dizer, onde os outros notam pombos eu noto gaivotas, que bicam não gasóleo, pontas de cigarro, caricas, papéis, porcaria. A senhora sorri-me dentro de uns óculos enormes, cheios de dioptrias benevolentes. Deve ter uma vida de inferno e sorri.

- A gente habitua-se a tudo

esclarece ela

- A gente habitua-se a tudo

e a gente habitua-se a tudo, de facto, só eu é que não me habituo ao inverno. Compra revistas cor de rosa no quiosque, cochicha com a dona. Acerca da mãe? Da vida? Do facto de a gente se habituar a tudo? Em Vila Praia de Âncora as gaivotas poisam na varanda do Licínio, que andou comigo em África e tem um quase museu referente à guerra na garagem. Livros, fotografias, granadas, um ror de objectos. Sabe tocar acordeão. Eu não sei tocar nada: Uma boa parte sua continua em Angola, fala da tropa no presente, conserva tanto material, para ele precioso, e para mim dores passadas que, de longe em longe, tornam. Mas há gaivotas poisadas na varanda e, na minha, nem um pardal para amostra. Vila Praia de Âncora, o mar, tão lindo, meu Deus. Não esqueço o jantar na casa dele, a ternura e a fidalguia com que me trataram, estava eu a ser feliz ali perto, em Caminha. Quase em Caminha, no meio do campo, a tirar o saco do pão da maçaneta da porta: há lá país mais bonito do que o meu, há lá língua mais bonita. Se lhe tirassem a televisão e os políticos era um sítio perfeito. E os jornais, já que estamos com a mão na massa. No jantar do Licínio o Costa, rádio também:

- Manda mosca, manda mosca

gritavam eles para os aparelhos. Alfa, Beta, Charlie, Delta, Eco, Fox-Trot, Golfe, Hotel, etc., olha, nem sabia que me recordava disto e, com isto, aluvião de nódoas negras. Em que sítio estará o paquistanês das duas mulheres? Nunca as vi contentes: mudas e graves, sempre. Pequeninas.

- Manda mosca

e lá chegava o helicóptero. Pequeninas, com roupas que se me afiguravam sobrepostas. E se eu vivesse com elas? Dormem os três na mesma cama? Não arranjei coragem para me informar. O meu pai contou-me que em Benfica havia um homem com duas mulheres também, todos muito satisfeitos, e que lhe chamavam o Zé do Meio. Tinha uma carroça. Mal o Zé do Meio morreu começaram as discussões entre as esposas. Para andar com aquilo tudo na ordem o Zé do Meio devia ser um sujeito e pêras. E não uma carroça de burro, uma carroça de mula, que exige mais autoridade. Segundo o meu pai, e jamais lhe escutei uma mentira, o Zé do Meio bebia que se fartava e ao entrar em casa malhava logo na família. As bofetadas, distribuídas, custam menos. A mula recebia também a sua parte e, por conseguinte, a harmonia era total. Comia a mula e comiam elas, que mais se pode desejar? Isto no topo da Travessa dos Arneiros, quase ao pé do cemitério, uma zona de respeito, que eu evitava no pavor que um esqueleto me perseguisse. Até hoje nenhum me aborreceu, a cochichar atrás de mim

- Chega aqui, menino

mas dá azar afirmar isto porque a regata ainda não acabou. Um dia, estou eu descansado da silva, e começa um agitar de ossos no corredor. Se tivesse as paquistanesas pedia-lhes que averiguassem o que se passava:

- Cheguem ali ao corredor a ver o que se passa

e elas iam, que remédio, mudas e graves, de maneira que em vez de me comer a mim o esqueleto as comia a ambas. Dias gelados, tristes e frios. Peço ao Licínio

- Manda vir a mosca

o Licínio agarra-se às manivelas

- Manda mosca manda mosca

subo para o helicóptero, explico ao piloto

- Leve-me a Agosto

e dali a nada estou de papo para o ar, na praia, a olhar sorvetes e a lamber biquinis, perdão, ao contrário, a olhar biquinis e a lamber sorvetes. Pensando bem, a primeira frase fica melhor.


Recolha de

JBS

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

TEXTOS DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES


NÃO É MEIA NOITE QUEM QUER



Há anos que este verso de René Char me persegue. Pensei usá-lo como título para um livro, como coda para um capítulo, fazer variações em torno dele num texto qualquer. Não fiz nada, até agora, porque me anda na cabeça mas não me aparece na mão, e só consigo escrever com os dedos, os miolos não pegam na esferográfica. Por qualquer motivo obscuro o bico da caneta não o aprova. E, no entanto, volta não volta lembro-me dele. Por exemplo quando me cruzo com a mendiga estrangeira, alemã ou holandesa, não sei, a pedir esmola no semáforo aqui perto. Dorme, com os seus sacos de plástico, na paragem do autocarro quase por baixo da minha janela, puxando trapos para si. Nunca lhe entendi a língua, mais sopros que palavras. Espera que o sinal fique vermelho e percorre os automóveis, de mão estendida, a murmurar. As pessoas dos carros fingem que não vêem, olhando, fixas, para diante: uma desgraçada, mais uma, o que não falta por aí é gente assim. O sinal torna-se verde e ela corre para o passeio, com os sacos. Um grande amigo meu, José Cardoso Pires, que não tinha muito dinheiro, que tinha muito pouco dinheiro, dava-o a todos aos infelizes que encontrava na rua. Isto era uma das coisas que eu mais admirava nele. E sentia-o, por dentro, comovido, o Zé que tentava sempre esconder as emoções. Fazia livros, como eu. Era irascível, temperamental, muitíssimo corajoso. Infelizmente a estrangeira nunca o encontrou. É em seu nome que entrego moedas à mulher

- Da parte do Zé

embora duvide que ela me entenda, ou oiça sequer. Não faz mal: oiço e entendo eu.

Não é meia-noite quem quer, que deslumbramento para mim: olha o meu pai no hospital, de bata, olha eu no hospital, a sofrer. Já não sofro: cansei-me de dar prazer à desgraça. Se acontecer alguma chatice leva-me mas não me aborreças. Na recruta, a certa altura, tinha um pé inchadíssimo, de uma queda naqueles exercícios que por lá se faziam, custava-me a andar como o caneco, mas continuava, a repetir para mim mesmo

- É só dor, é só dor

e foi aí que comecei a não ter vergonha de mim. Ainda hoje

- É só dor

e a gente aguenta. Apesar de tudo não é meia-noite quem quer, não é verdade? Há uns tempos que não encontro a estrangeira: terá mudado de poiso, terá morrido? Ninguém morre, que ideia mais idiota, morrer. A prova é que o meu pai, por exemplo, continua a andar, de bata e cachimbo, no hospital, não me tiram isto da ideia:

- Os meus rapazes

dizia ele dos filhos

- Os meus rapazes

e os seus rapazes cá estão, mais ou menos mas cá estão, olha este sol agora, a entrar casa dentro, o chão iluminado, os móveis, as paredes, as folhas das árvores com tantas cores diferentes, porque não convidá-las

- Não lhes apetece entrar?

começo a fazer esta crónica com pausas dado que a mão vazia, parece que tropeça na página, lá se recompõe, a pobre, ameaça desmaiar de novo, um livro na estante, não sei ao certo onde, à minha esquerda, acho eu, principia a conversar comigo, pergunta uma coisa que não entendo bem, não lhe respondo, faço um gesto sem destino na esperança de contentá-lo, o livro cala-se, que esquisitos os livros, tanta barulheira às vezes. Acabei o meu trabalho ontem, seguem-se os habituais meses de pousio, quando não ando às voltas com um romance o mundo torna-se estranho, devia ir para os semáforos com sacos de plástico

- Uma ajudinha, amigo

e fico aqui a ler, na mesma mesa em que rabisco as páginas, que silêncio nas coisas, que vazio, não é meia-noite quem quer, rodeio-me de pessoas que não existem, rodeio-me de vozes, sinto-me cheio de palavras que não amadureceram ainda, não palavras, larvas de palavras, imagens que surgem e se desvanecem, desfocadas, fugidias, peço a mim mesmo

- Uma ajudinha, amigo

vejo o Zé à cata de dinheiro nos bolsos, ainda me toca passar na rua dele, há-de tocar-me sempre

- Uma ajudinha, amigo

a eterna queixa do Zé

- Como é que eu consigo gramar um gajo que gosta de comida de avião?

e é verdade, gosto de comida de avião, voltar a brincar aos jantarinhos com todos aqueles plásticos com coisas dentro, folhinhas, raminhos, pedrinhas, porcarias e eu com ar solene de quem almoça a sério, gosto de pedir vinho branco e ter medo que se espantem

- Vinho branco na sua idade?

e se queixem à minha mãe

- O miúdo bebe às escondidas

a minha mãe, severa

- Que história é essa do vinho?

mesmo que experimente amaciá-la com uma lista de bêbados ilustres

- Quero lá saber do Hemingway

confesso que realmente, eu que não tomo álcool, me bato com uma garrafa de vinho branco nos aviões, a indignação dela a aumentar

- E que fazes tu nos aviões, já agora?

quando devia estar no quarto às voltas com raízes quadradas e, aqui para nós, realmente devia, demorei que tempos a perceber porque chamavam quadradas às raízes, quer dizer, percebo vagamente, o professor acha que percebo e deixa-me em paz, no fundo não percebo

- Não sei nada da vida, senhor, desculpe

e não sei nada porque não é meia-noite quem quer, raio de verso, que mal fiz eu a Deus para me perseguires, a minha mãe não desiste

- Como estamos com a mão na massa a léria de ir para os semáforos é verdade?

eu com a estrangeira, alemã ou holandesa, nos sinais vermelhos, murmurando para os carros parados, com as pessoas, surdas, a olharem em frente, agarrando o volante com mais força, lá recolhemos ao passeio quando o verde chega, os dedos dela, com um resto de luva, pesam-me no ombro, hoje não durmo em casa, durmo na paragem do autocarro, e talvez não seja má ideia de todo porque, em frente, num out-door, há uma rapariga em lingerie, lindíssima, que de vez em quando me pisca o olho.


Recolha de

JBS

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

TEXTOS DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES


O PONTINHA

Quem te deu licença de morrer?

"Agora já não lhe batem, nem dá banho ao polegar em nenhuma sopa. Porque é que a sua morte me entristece? Por ele, claro, mas por mim também. Por ele, dado que o Pontinha apreciava viver, mesmo no meio da aflição dos seus dias. Por mim, pelo facto de o meu mundo se ir despovoando. Não me agrada que me roubem o passado, me depenem de recordações, memórias, torradas, panos sujos


Soube ontem que o Pontinha morreu em agosto. Era pobre demais para que alguém se interessasse por ele, falasse dele. Viva na franja da miséria, com uma reforma ridícula, que tentava melhorar engraxando sapatos, aos domingos, no Campo Grande. Nunca o vi maldisposto, nunca o ouvi queixar-se. Aceitava. Foi ordenança da messe de oficiais em Marimba, cortava-me a comida em bocadinhos de dois por três centímetros, que eu conferia com uma fita métrica, no pretexto do tamanho da minha goela. Um milímetro a mais e soltava um berro

- Pontinha

mostrando-lhe, de dedo apontado, que não cabia. O Pontinha levava aquilo para dentro e procedia a novas medições. No encontro anual da Companhia fazia questão de me preparar o almoço, às vezes mandava-o sentar-se ao meu lado e o Pontinha, impante, designando os outros

soldados

- Mijam-se todos de inveja de eu estar aqui à sua beira

a triunfar, radiante de júbilo, torto, feio, feliz. Não usava arma, trazia um pano sujo pendurado do ombro. A higiene não era o forte dele mas, na desgraça em que vivíamos, quem se ralava com isso? Várias vezes lhe ordenei

- Tira o polegar da minha sopa

O Pontinha tirava, chupava-o, perguntava-me

- Já está limpo, não está?

e, sem dar por isso, metia-o lá dentro outra vez. No meio daquela água chilra distinguia-lhe o cuspo, e engolia o polegar, água morna e alguns feijões. À tarde, se estava no aquartelamento, pedia-lhe chá e torradas, mais duras que os meus dentes, com uma leve sombra de manteiga em cima. Quanto ao chá sabia, em partes iguais, a borras de café e a Pontinha. O Pontinha era atirador, mas como a sua coragem se mostrava um bocado vacilante passou para a messe, um casinhoto horrível, diante do pau da bandeira e das trovoadas. O segundo comandante, de quem eu gostava

- Porque é que vocês têm aqui esta coisa?

fitando o Pontinha num desgosto à beira das lágrimas, e no entanto mantivemo-lo firme, com a sua sujidade e os seus dentes mal plantados, porque o Pontinha era tão mau que se tornava esplêndido e dava um vago colorido às nossas tristes existências. Acho que acabámos por ter uma certa ternura por ele

(que palavra tão esquisita na guerra, ternura)

e nos comovia o seu desamparo. Se calhar ele também tinha uma certa ternura por nós e comovia-o o nosso desamparo. Epidemias de cólera, solidão, saudades. Só o Pontinha se me afigurava contente no meio dos seus tachos em desordem: servir os senhores oficiais, que privilégio. E este agosto morreu. Nos encontros da companhia admitia que a mulher lhe dava porrada:

- E tu?

o Pontinha, convicto

- Lá lhe vou batendo também

mas menos que ela, mais desembaraçada no bofetão. Não parecia sofrer com essas lutas, orgulhava-se sinceramente da ferocidade da esposa:

- Não é para graças

exultava ele

- Não é para graças

orgulhoso da sua padeira de Aljubarrota, que lhe ficava com o dinheiro porque o Pontinha sofria de inclinações para o tinto. Na última ocasião não veio, alguém comentou vagamente

- Parece que não está muito bem

e não sei quê nos ossos enfiou-o numa caixa. Agora já não lhe batem, nem dá banho ao polegar em nenhuma sopa. Porque é que a sua morte me entristece? Por ele, claro, mas por mim também. Por ele, dado que o Pontinha apreciava viver, mesmo no meio da aflição dos seus dias. Por mim, pelo facto de o meu mundo se ir despovoando. Não me agrada que me roubem o passado, me depenem de recordações, memórias, torradas, panos sujos. Apetece-me berrar

- Pontinha

e o Pontinha vir a correr, relativamente a correr visto que a pressa não fazia parte das suas características, suspender-se no limiar com o pano sujo, interrogar

- É o lanchinho senhor doutor?

(não me tratava pelo posto, tratava-me por

- Senhor doutor)

e proceder, num imenso chinfrim de metais, à confeção das suas fatias de granito. Apetece-me inquirir

- Enfiaste o dedo na caneca do chá?

escutar de volta

- Quer que prove a ver se tem bastante açúcar?

Uivar-lhe

- Não

com o Pontinha já a sorver um golo, chamar-lhe

- Seu cabrão

e no fundo achar graça a tanto desvelo maternal, tanto cuidado. Há anos anunciou-me

- Você precisa é que vá para sua casa tomar conta de si

e quase estive de acordo com ele. Insistiu

- Não quer que vá para sua casa tomar conta de si?

por uma unha negra não disse

- Quero

e de novo as mangueiras de Marimba, tão lindas, entre a Administração e o posto médico, e de novo a comida cortada em dois por três centímetros, e de novo as imensas noites de Angola na estreiteza de Lisboa. E de novo nós com vinte anos e de novo estrelas desconhecidas, sem fim, a garantirem-nos que éramos eternos, que seríamos eternos eternamente. Alguns cadáveres à nossa volta, claro, mas a gente eternos. Foste-te com uma coisa nos ossos, imagine-se. Com que direito? Se caíres na asneira de me aparecer à frente torno a chamar-te

- Seu cabrão

já que, vendo bem as coisas, não era má ideia estares em minha casa a tomar conta de mim.

- Se eu tomasse conta de você o senhor doutor andava aí como uma rosa
e palavra que me dava jeito andar aí como uma rosa, as pessoas

- Anda aí como uma rosa

e eu

- É que tenho o Pontinha comigo

para os que não possuem a sorte de ter o Pontinha com eles, nem de exigirem

- Dois por três centímetros, Pontinha, nem mais um milímetro

e o Pontinha, de fita métrica, a conferir o rosbife.

recolha de

JBS

sábado, 19 de fevereiro de 2011

COMO SE GOSTASSE


COMO SE GOSTASSE
de João Brito Sousa

O Blog dos antigos alunos da Escola tem proporcionado alguns contactos muito interessantes com Amigos de outras Escolas.Pois bem o João Manuel Brito de Sousa, um Algarvio que fez o Curso Geral do Comércio na Escola Industrial e Comercial de Faro, teve a gentileza de me enviar um livro que publicou.“Como se Gostasse” conta-nos a história de José Lázaro um homem cheio de virtudes e defeitos, por isso é um romance da vida para a vida.A acção decorre no princípio do século XX, quando a Primeira República dava os primeiros passos.“Lázaro foi um homem do Amor, deu brado nas noites de Lisboa, conviveu de perto com as coristas de Revista e dizem que teve um caso com a fadista Maria Mendes. Era um homem das arábias”Diz o autor - a literatura não é História, por isso algumas passagens do romance estão escritos como eu gostaria que fosse -.
Publicado por Zé Ventura
Colocado
JBS

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

CARTA

Uma carta de Abraham Lincoln ao professor do seu filho

Caro professor,
ele (o filho) terá de aprender que nem todos os homens são justos, nem todos são verdadeiros, mas por favor diga-lhe que, por cada vilão há um herói, que por cada egoísta, há também um líder dedicado, ensine-lhe por favor que por cada inimigo haverá também um amigo, ensine-lhe que mais vale uma moeda ganha que uma moeda encontrada, ensine-o a perder mas também a saber gozar da vitória, afaste-o da inveja e dê-lhe a conhecer a alegria profunda do sorriso silencioso, faça-o maravilhar-se com os livros, mas deixe-o também perder-se com os pássaros do céu, as flores do campo, os montes e os vales
.Nas brincadeiras com os amigos, explique-lhe que a derrota honrosa vale mais que a vitória vergonhosa, ensine-o a acreditar em si, mesmo se sozinho contra todos. Ensine-o a ser gentil com os gentis e duro com os duros, ensine-o a nunca entrar no comboio simplesmente porque os outros também entraram.
Ensine-o a ouvir a todos, mas, na hora da verdade, a decidir sozinho, ensine-o a rir quando esta triste e explique-lhe que por vezes os homens também choram. Ensine-o a ignorar as multidões que reclamam sangue e a lutar só contra todos, se ele achar que tem razão.Trate-o bem, mas não o mime, pois só o teste do fogo faz o verdadeiro aço, deixe-o ter a coragem de ser impaciente e a paciência de ser corajoso.Transmita-lhe uma fé sublime no Criador e fé também em si, pois só assim poderá ter fé nos homens.Eu sei que estou a pedir muito, mas veja que pode fazer, caro professor."
(Abraham Lincoln, 1830)
recolha de
João Brito Sousa

domingo, 13 de fevereiro de 2011

artigo de mario freitas


Aeconomia não se faz com , medidas superficiais. A complicadíssima fase que se vive também veio afectar a "estão de certas autarquias pelo desgovemo que tiveram no passado. O tempo das vacas gordas esvaiu-se! Concordamos todos com as empresas municipais? A Valores e atitudes, padrões de comportamento,tornaram-se desertores do actual sistema! É urgente definir, sim, uma política e estratégia de crescimento económico sustentável e ter uma cultura de exigência ao nível dos gastos públicos compatível com os tempos difíceis que atravessamos.
Exercemos o consumo de rico para providade de pobre! _ A nossa sustentabtlidade poderá não durar mais do que uma década. Temos a obrigação de assegurar o futuro dos nossos netos. As forças políticas têm que concertar uma solução corrente para execução imediata porque a sua degradação actual é evidente.
Ou se mudam os parâmetros (lateral ou colateral)da economia Portuguesa, a redução que o défice público assoma, os encargos descabidos dos juros ou esta antinomia permitirá que a "Nação"venha a ser «avaliada». Temos uma carga fiscal incomensurável superior a países industrializados com uma economia muito superior à nossa. Olhar a realidade e partios A que distância estamos do ciclo do empobrecimento?
Denomino de "traficantes financeiros" os causadores desta crise que não é, essencialmente, importada. O nosso pretérito recente está historicamente esvaziado. Deveríamos ter arte e engenho para o debelar e recuperar a dignidade que herdámos do passado. Mais e maior dignidade e honra, maior maturidade política com o reforçar de-uma-Elemocracia adulta e liberdade de ideias que siga contra a exclusão social e proteja, incondicionalmente, os jovens. Parte da experiência retirada da Guerra Colonial não foi suficiente para saber que quem decide uma "guerra" é a vontade do povo!
"Umguerrilheiro moçambicano revelou, a propósito da operação «Nó Córdio», referida num programa televisivo 1que esteve, na época, ais de 45 dias sem tomar banho por não terem sabão
e que os militares portugueses sabiam dessas dificuldades colocadas à população.
Contudo ele 2 considerou essa questão - falta de sabão - menosprezada porque a causa principal por e erdade do território. Por ela tudo fariam até a conquistar! E conquístarám.. . Os "estrategas militares" portugueses dessa época ajuizaram ser mais relevante a falta de sabão do que o patriotismo daqueles que defendiam, inteiramente, um princípio básico: fazer crescer o modelo de protecção social anómalo 3 contra o sistema que lhes era imposto.
E a força não venceu a .. "llnião"!
Entretanto', - acabámos de reconduzir o Presidente da República. Incontestável vitória, em todos os Distritos e Regiões Autónomas, de um homem que sociologicamente é oriundo do povo
contra uma candidatura errática, ambígua com um discurso antagónico, que deslumbrou pela negativa apoiado por dois partidos -PS e BE - que em S. Bento se maltratam verbal e politicamente dando um péssimo exemplo de que nem sempre o "vale tudo" é bom conselheiro.
Transpareceu-nos, claramente, que houve uma desobriga de socialistas ao "acompanhar" o candidato.
O que nos espera o futuro não muito distante? Os principais orquestradores do 2~ de Abril estão a finar-se ... quem se segue? 1 '~ Guerra" RTP l jornalista Joaquim Furtado) 2 Ex-guerilheiro moçambicano (Frelimo) 3 Imparcial.
recolha de
JBS

sábado, 5 de fevereiro de 2011

COM O DEVIDO RESPEITO

GENTE QUE MERECEU

Temos perante nós uma velha fotografia, reproduzida num dos últimos números do prestigiado mensário “Notícias de São Brás”, editado na Vila de São Brás de Alportel.
Sob o título “Recordando o Passado”, a foto enuncia-nos um “Grupo Ilustre”. Assina J. B., colaborador do referido jornal.
“Grupo Ilustre”. E na verdade - para quem os conheceu a quase todos, à época - trata-se de um grupo de gente de certo modo ilustre. Gente da cultura, da religião, da medicina, da engenharia, do comércio, da indústria. Tudo vultos do Algarve e ligados ao Algarve, de então. À vida algarvia doa anos 40/50 do século que findou há pouco.
Fotografados à porta da Pousada de São Brás, velho edifício, de um tempo muito antes das obras de beneficiação de que veio a ser alvo e que de pouco lhe valeram nos dias de hoje, pois presentemente encontra-se encerrada a dita Pousada, por alegada inviabilidade económica, dado o surgimento recente da nova Pousada de Estói. Coisas que o império da hotelaria tece…
Aqui, aos Almargens, ao Poço Ferreiros, a este serro com uma vista panorâmica ainda agora deslumbrante, admirável, aqui a São Brás de Alportel, vieram António Ferro, ministro de da Propaganda do Regime de Salazar, acompanhado por Duarte Pacheco (outro algarvio), também ministro e das Obras Públicas, com o fim de escolherem o melhor local para edificar a segunda Pousada Portuguesa, e a primeira da Região Algarvia.
Quanto a nós, escolheram bem o local, sobranceiro à Vila. A Pousada veio a tornar-se para o tempo que se vivia uma acolhedora, moderna, e aconchegante unidade hoteleira regional. Vão longe esses tempos…
Reunidos na foto, ei-los que aí estão, depois de um provável opíparo almoço, com manjares tipicamente regionais, como era uso desta Pousada regional…
Vamos recordar os identificados, de modo leve, por razões de espaço, que esta crónica ocupa. Da esquerda para a direita, lá está com ar bem-disposto o Dr. Mário Dinis Porto (Pai), de chapéu na mão, fumando o seu cachimbo.
Com ele trabalhámos, na condição de médico de Saúde Pública em São Brás de Alportel. Já o Dr. Mário Porto ia entrado na idade… Por esta altura, princípios dos anos setenta, também fazia parte do mesmo grupo o Dr. João Dias (Filho), a quem todos os colegas chamavam com carinho e respeito… “o Joãozinho”. Ambos, já não pertencem ao número dos vivos, como aliás todos os outros que se deixaram fotografar naquela tarde longínqua, na Pousada.
A nossa relação com o Dr. Mário Porto foi sempre franca, leal, cerzida numa camaradagem inesquecível. Com ele aprendemos a dedicação à profissão, o trato lhano e sadio com os doentes, a prática de uma medicina rural com fracos recursos, mas com muito boas noções de semiologia clínica e excepcional êxito nos resultados. Igualmente nos ensinou, que a vida deve ser bem vivida e nunca levada muito a sério.
O Dr. Porto conhecia os seus doentes como as suas mãos, passe a expressão, e tratava-os a todos filialmente por tu. Bom conviva, tinha as suas horas próprias para “filosofar”. E era um nato contador de estórias, testemunho vivo de uma vida inteira a lidar com pessoas. Rematava sempre as nossas conversas com uma anedota brejeira ou com ditos recheados de imensa graça.
Deixou-nos a saudade da sua própria pessoa… E a saudade desse tempo de trabalho e de convívio, e igualmente a saudade de um Portugal rural e “doméstico”, apertadinho, com o fato cingido ao corpo, talhado à medida, onde tudo era sujeito a censura e repressão.
J. B., que assina por baixo da foto, não conseguiu identificar os dois outros indivíduos que estão colocados na foto por detrás do Dr. Mário Porto. Nós, também não. Um, por estar quase totalmente encoberto. O outro, bem visível, mas desconhecido para as pessoas deste tempo, provavelmente comerciante ou industrial, gente das redondezas (?) da Vila serrana de São Brás de Alportel.
À frente, sobressai o Padre Inácio, pároco de São Brás de Alportel, ao tempo. Grande figura humana e homem dotado de uma inteligência fora do comum, para além de uma sensibilidade e caridade notável. Quem conviveu com ele sabe quanto o seu humanismo, a sua cultura, a sua bondade pesavam. O povo “amava-o” e respeitava-o verdadeiramente.
– “Ah, Padre Inácio! Valha-nos, Padre Inácio!... Valha-nos Deus e os seus santos!” – gritava o povo nas horas de aflição e tormento.
E o Padre Inácio lá estava, no seu posto, nas horas em que necessitavam dele.
A figura do Padre Inácio (só ela, daria uma crónica…) foi sempre muito popular. Era muito querido por todos os lugares por onde passava. A sua morte tão precoce (que a morte é sempre precoce…) deixou viva saudade em todos quantos com ele lidaram, ou por ele foram baptizados ou consorciados pelo casamento, todos os que a sua humanidade “tocou”.
(continua)
Por: Varela Pires

Recolha de
JBS

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

ALMEIDA GARRETT

OS 212 ANOS DO NASCMENTO DE ALMEIDA GARRETT.
Por João Brito Sousa


Nasceu no Porto em 4 de Fevereiro de 1799. Foi o Iniciador do Romantismo, refundador do teatro português, criador do lirismo moderno, criador da prosa moderna, jornalista, político, legislador, Garrett é um exemplo de aliança inseparável entre o homem político e o escritor, o cidadão e o poeta.

É considerado, por muitos autores, como o escritor português mais completo de todo o século XIX, porquanto nos deixou obras-primas na poesia, no teatro e na prosa, inovando a escrita e a composição em cada um destes géneros literários.
João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett nasceu no seio de uma família burguesa, que se refugia em 1809 na ilha Terceira, a fim de escapar à segunda invasão francesa. Nos Açores, recebe uma educação clássica e iluminista (Voltaire e Rousseau, que lhe ensinam o valor da Liberdade), orientada pelo tio, Frei Alexandre da Conceição, Bispo de Angra, ele próprio escritor.

Em 1817, vai estudar Leis para Coimbra, foco de fermentação das ideias liberais. Em 1820, finalista em Coimbra, recebe com entusiasmo e optimismo a notícia da revolução liberal. Em 1821, representa o Catão e publica em Coimbra O Retrato de Vénus, obras marcadas ainda por um estilo arcádico.

Arcádicos são igualmente os poemas que escreve durante este período e que serão insertos, em 1829, na Lírica de João Mínimo. Em 1822, é nomeado funcionário do Ministério do Reino, casa com Luísa Midosi e funda o jornal para senhoras O Toucador. Em 1823, com a reacção miguelista da Vila-Francada, é obrigado a exilar-se em Inglaterra, onde inicia o estudo do Romantismo (inglês), e depois em França, onde se torna correspondente de uma filial da casa Lafitte.

Contacta então com a literatura romântica (Byron, Lamartine, Vítor Hugo, Schlegel, Walter Scott, Mme de Staël), redescobre Shakespeare e, influenciado pelas recolhas de cancioneiros populares, começa a preparar o Romanceiro. Em 1825 e 1826, publica em Paris os poemas Camões e Dona Branca, primeiras obras portuguesas de cunho romântico, fruto da metamorfose estética em si operada pelas novas leituras. Em 1826, publica também o Bosquejo da História da Poesia e Língua Portuguesa, como introdução à antologia de poesia portuguesa Parnaso Lusitano. Em 1826, durante um período de tréguas, regressa a Portugal e mostra-se confiante na Carta Constitucional acordada entre D. Pedro e D. Miguel, mais moderada que o programa vintista.

Dedica-se ao jornalismo político nos jornais O Português e O Cronista. Em 1828, depois da retoma do poder absoluto por parte de D. Miguel, exila-se novamente em Inglaterra. Em 1829, publica em Londres a Lírica de João Mínimo e o tratado Da Educação. Em 1830, publica o tratado político Portugal na Balança da Europa, onde analisa a história da crise portuguesa e exorta à unidade e à moderação. Em 1832, parte para a ilha Terceira, incorpora-se no exército liberal, e participa no desembarque em Mindelo. Escreve, durante o cerco do Porto, o romance histórico O Arco de Santana e colabora com Mouzinho da Silveira nas reformas administrativas.

Em 1834, é nomeado cônsul-geral em Bruxelas, numa espécie de terceiro exílio motivado pelo cada vez maior desencanto em relação à política portuguesa (a divisão dos liberais, a corrida aos cargos públicos), onde contacta com a língua e a literatura alemãs (Herder, Schiller e Goethe). Também exerceu funções diplomáticas em Londres e em Paris. Em 1836, regressa a Lisboa, separa-se de Luísa Midosi e funda o jornal O Português Constitucional. No mesmo ano, após a Revolução de Setembro, é incumbido pelo governo setembrista de Passos Manuel da organização do Teatro Nacional.

Nesse âmbito, desenvolverá uma acção notável, dirigindo a Inspecção Geral dos Teatros e o Conservatório de Arte Dramática, intervindo no projecto do futuro Teatro Nacional de D. Maria II e escrevendo ao longo dos anos seguintes todo um repertório dramático nacional: Um Auto de Gil Vicente (1838), Dona Filipa de Vilhena (1840), O Alfageme de Santarém (1842), Frei Luís de Sousa (1843). É por esta altura que inicia um romance com Adelaide Deville, que morrerá em 1841, deixando-lhe uma filha (episódio que inspirará o Frei Luís de Sousa). Em 1838, torna-se deputado da Assembleia Constituinte e membro da comissão de reforma do Código Administrativo. No ano de 1843 publica o 1.º volume do Romanceiro, uma recolha de poesias de tradição popular.

Em 1845, lança o livro de poesias líricas Flores sem Fruto e o 1.º volume do romance histórico O Arco de Sant'Ana. Em 1846, sai em volume o "inclassificável" livro das Viagens na Minha Terra, publicado um ano antes em folhetim na Revista Universal Lisbonense. Com este livro, a crítica considera iniciada a prosa moderna em Portugal. Em 1851, depois de um período de distanciamento face à vida política, regressa com a Regeneração, movimento que prometia conciliação e progresso. Nesse ano, funda o jornal A Regeneração, aceita o título de visconde e reassume o seu papel de deputado, colaborando na proposta de revisão da Carta. Em 1852, torna-se, por pouco tempo, ministro dos Negócios Estrangeiros. Em 1853, publica o livro de poesias líricas Folhas Caídas, recebido com algum escândalo: o poeta era, na época, uma figura pública respeitável (deputado, ministro, visconde), que se atrevia a cantar o amor desafiando todas as convenções, e muitos souberam ver na obra ecos da paixão do autor pela viscondessa da Luz, Rosa de Montufar. Em 1854, morre em Lisboa, aos cinquenta e cinco anos.


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