ARTIGO DE OPINIÃO, in jornal Expresso
Miguel Sousa Tavares
Miguel Sousa Tavares
Parece que, afinal, as notícias de que a Santa Sé teria declarado como novo pecado mortal ser-se rico demais eram ligeiramente exageradas. A Santa Sé não disse tanto - aliás, não se atreveu a relembrar o que está escrito no Novo Testamento há dois mil anos sobre o camelo e o buraco da agulha. Bem o podia ter feito, que vinha mesmo a calhar, agora que o mundo vive na iminência de uma recessão económica global e grave, causada pelo excesso de ganância dos muito ricos.
Alan Greenspan, ex-presidente da Reserva Federal americana, lembrou-se agora de avisar que vem aí a maior recessão económica dos últimos sessenta anos. Pena que não se tenha lembrado de avisar antes, quando, do alto do seu imenso poder de controlo e influência sobre o governo federal e o sistema financeiro americano, assistiu tranquilamente ao crescimento da ‘bolha imobiliária’ nos Estados Unidos, à ganância de banqueiros de vão de escada (escudados em bancos mais poderosos e supostamente mais responsáveis), incentivando os consumidores a recorrerem desenfreadamente ao crédito e assim manterem os preços especulativos do imobiliário.
E quando assistiu também, sem uma palavra, aos esforços perseverantes do sr. Bush para derreter os excedentes orçamentais herdados de Clinton e voltar a endividar os Estados Unidos até ao tutano, para melhor satisfazer a sua clientela de amigos e correligionários com interesses no petróleo, na indústria de armamento ou na ‘reconstrução civil’ do Iraque.
E é pena, porque há centenas ou milhares de milhões de pessoas no mundo inteiro que agora vão pagar a factura dos lucros episódicos da banca e dos amigos de Bush, para quem a destruição e posterior ‘reconstrução’ do Iraque foi um negócio de mão cheia. Com o dólar em queda livre, a Europa vai pagar o reequilíbrio da balança comercial e do défice americano: excelentes empresas portuguesas, a cuja capacidade de reconversão e de inovação deve Portugal muito da recuperação do défice, vão agora ver todo o seu esforço comprometido pela concorrência desleal dos produtos americanos, vendidos mais baratos apenas porque o dólar implodiu.
Pior ainda (sem, ao menos, terem a protecção de um espaço comum e uma moeda comum forte) estão os países emergentes do Terceiro Mundo, como a Índia ou a China, cujo esforço titânico para arrancar da miséria biliões de pessoas vai agora esbarrar com as dificuldades de exportação e com o preço do barril de petróleo, que não têm, a escalar todos os dias, na proporção em que o dólar vai descendo e devido a essa descida.
Milhares de pessoas em todo o mundo vão ser devolvidas à mais infame miséria de que se tinham conseguido erguer para pagar as aventuras da Halliburton, do sr. Dick Cheney, do sr. Donald Rumsfeldt e dos amigos do Texas desse completo cretino que é o Presidente dos Estados Unidos da América. Mas, mesmo nos Estados Unidos, e como seria de esperar, são os pobres que vão pagar a factura do desgoverno dos milionários: vinte ou trinta milhões de americanos estão condenados a virar «homeless» a curto prazo, se medidas como a que propôs a candidata e senadora Clinton (seis meses de moratória para a execução de qualquer hipoteca sobre casas) não forem adoptadas de emergência.
Os Estados Unidos vão precisar de injectar biliões de dólares de dinheiros públicos para evitar a falência em série do sistema financeiro e, por arrasto, de todo o sistema empresarial. O que lhes poderá evitar a repetição de 29 é que agora a economia é global e eles esperam poder evitar a falência de um Estado já altamente endividado através das trocas comerciais: vendem ao mundo inteiro mais barato e não compram nada de volta porque, com o euro a 1,60 dólares, ninguém consegue vender nada aos americanos. Ou seja: provocaram a crise e agora somos nós que temos de a pagar. Eis a demonstração prática da frase do Hamlet: “a loucura dos poderosos não pode passar sem vigilância”. Espero que alguém se lembre de escrever isto no caixão do sr. Greenspan.
Obviamente, devia haver lições a extrair deste cenário de catástrofe e das razões para ele. Entregue a si próprio, após a queda do muro de Berlim, o capitalismo internacional parece que fez questão de confirmar que tudo o que de pior os marxistas tinham dito dele ao longo de um século só pecava por defeito. Só pode ser uma comédia histórica ver a Igreja Católica (decerto impressionada pelo exemplo indecente dos irmãos da Opus Dei no nosso tão católico BCP e outros) insinuar que ser escandalosamente rico é capaz de ser pecado mortal, e ver o Partido Comunista da China declarar que “ser rico é glorioso e revolucionário”. O mundo está de pernas para o ar. Pois está, mas há lições a extrair.
Marx dizia que o dinheiro faz dinheiro e esse era o pecado original do capitalismo. Em contraponto, os capitalistas juravam que o dinheiro produz riqueza e, entre os dois, os sociais-democratas propuseram que o dinheiro criasse então riqueza e que o Estado tributasse essa riqueza - “de cada um segundo as suas possibilidades, a cada um segundo as suas necessidades”. Mas tudo isso foi antes da globalização.
Agora o que vemos é que, dos cem homens tidos como os mais ricos da Alemanha, quarenta tinham uma conta secreta numa «off-shore» do Liechtenstein, para fugirem ao fisco (também lá estão alguns portugueses, mas desconhece-se se o Governo se vai atrever a pedir os seus nomes à chanceler Merkel e agir em conformidade). Razão tinha o nº 1 da lista da ‘Forbes’, Warren Buffet, quando disse que doava um bilião de dólares para assistência social se houvesse um só presidente de banco americano que lhe conseguisse provar que pagava uma taxa mais alta de imposto que a sua secretária. (Já agora é interessante constatar que todos os bilionários do mundo - Buffet, Bill Gates, Carlos Slim, etc. - são conhecidos também pela sua veia filantrópica. E quantos milionários nossos conhecemos que financiem uma ala de hospital, um programa de saúde, um laboratório ou Faculdade na Universidade, um prémio literário ou artístico, um bairro social, um parque natural? Pior ainda é quando olhamos para a lista da ‘Forbes’ e constatamos que os grandes milionários portugueses que lá figuram devem a sua fortuna a relações íntimas com o poder, aqui ou em Angola, ou a simples especulação bolsista, sem que dêem ao país qualquer contrapartida de valor).
Tarde e a más horas outra vez, Alan Greenspan vem dizer que espera que a crise ensine que o sistema financeiro não pode continuar em auto-regulação. Infelizmente, não é certo que, mesmo agora, os governos aprendam a lição. Eles acham que o sistema financeiro é tão importante que não se lhe pode tocar nem com uma flor. E um dia, como agora sucedeu em Inglaterra e nos Estados Unidos, acordam em sobressalto e correm a meter dinheiro dos contribuintes para evitar a falência dos bancos - enquanto os seus administradores se retiraram com reformas escandalosas em paga do bonito serviço que deixaram. É verdade que a economia não é uma ciência certa. Mas a ética nos negócios e o decoro são-no: têm regras que todos conhecemos.
P.S.: Sempre detestei usar este meu espaço para contas pessoais e, por isso, vou restringir-me ao mínimo: a idade ensinou-me que não vale a pena gastar tempo e energias a discutir com pessoas de má-fé.
P.S.: Sempre detestei usar este meu espaço para contas pessoais e, por isso, vou restringir-me ao mínimo: a idade ensinou-me que não vale a pena gastar tempo e energias a discutir com pessoas de má-fé.
Isto aplica-se ao director do ‘Público’.
MEU COMENTÁRIO
Excelente texto de Miguel Sous Tavares.
PUBLICAÇÃO de
João Brito Sousa
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