sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

HISTÓRIAS DE GUERRA


por Arnaldo Silva

Fiz tropa em Angola. Digo "fiz tropa" porque não fiz directamente a guerra.Vivi, isso sim, as suas consequências, no que toca aos estropiamentos e mutilações por ela provocados, pois era o Encarregado das Consultas Externas do Hospital Militar de Luanda. Mas não é por aí que quero ir neste momento. Quero amenizar o maléfico e abominável tema da Guerra para contar uma história das que também fazem sorrir, quando evocada.

A malta que teve a felicidade de se quedar por Luanda enquanto os seus camaradas se batiam no mato e eram vitimados pelo fogo do inimigo, tinha apenas uma leve noção do que era fazer a Guerra. Nada de passar fome, de marchas e emboscadas por caminhos desconhecidos e nunca dantes desbravados.

Nada de saber o que seria e como será viver no medo permanente de ser atacado, dormir no sobressalto de poder ser acordado ao som do metralhar das armas ou passar os dias na ansiedade de se ver inesperadamente envolvido numa campanha .

Mas a Guerra estava lá e trazia aos citadinos as suas lembranças, muitas vezes em forma de alertas que provocavam o aumento de ansiedades e nervosismos e forçavam os militares das Unidades urbanas a reforçar sentinelas e implementar esquemas de vigilância suplementar.Entrávamos "de prevenção".

O Hospital Militar não fugia â regra. Quando esses alertas chegavam, normalmente vindos do Quartel General, o pessoal de serviço, durante a noite, era armado com Walters e FBP's, desde os soldados de piquete até ao médico de Banco. As sentinelas eram fortemente instadas a redrobrar a atenção de vigia durante os seus turnos e recomendadas de que deviam reportar de imediato ao seu chefe todas as ocorrências que considerassem anormais.

Uma dessas noites de prevenção decretada, estava eu de serviço, sentado à volta de uma mesa onde as cartas se movimentavam num interessante jogo de "lerpa", entre os sargentos e oficiais igualmente de serviço, quando, alta madrugada, inopinadamente, fui interrompido pelo barulho ofegante de um cabo que entrou na sala sem as regulamentares formalidades militares e balbuciava algo que nenhum dos presentes queria acreditar: "Vamos ser atacados!"

Balbúrdia, reboliço, adrenalina a subir a rodos foi o que repentinamente pintou naquela sala.
Todos militares de secretaria, nem para as armas corremos!Indagámos do cabo uma explicação do porquê daquela declaração e este informou que a sentinela de serviço no canto norte da área do Hospital estava ouvindo, havia já algum tempo, um barulho de restolho, junto das árvores que marcavam a fronteira do nosso terreno.

Que estava cansado de perguntar "Quem vem lá!?" sem obter resposta. Que ele, cabo, tinha estado lá a constatar o referido restolhar, sem que tivesse recebido qualquer retorno à sua voz de comandos. Logo, concluía, os "turras" deveriam estar tomando posições no terreno!
Militares da "treta", irreponsáveis pela inexperiência, presas fáceis do medo, mirámo-nos e interrogámo-nos sobre o que fazer.

Pareceu-nos que o mais natural seria verificar 'in loco' o que se estava a passar. Saímos. Um forte nevoeiro, que impedia de se ver meio palmo à nossa frente, acolheu-nos de surpresa, aumentando a tensão entre todos os presentes. Mas, heróis de uma guerra que nunca experimentámos, avançámos na direcção do restolhar. Armas em punho, armas que só conheceramos durante os ensaios de tiro durante a recruta, lá fomos, motivados por um propósito e um ânimo que ainda hoje não sei definir. Inconsciência característica dos vinte anos, provavelmente.

Chegados ao local e identificados pelo sentinela de serviço, perscrutámos as redondezas, ouvimos o barulho do restolho, algo que se repetia a espaços e sentimos a tensão e o cagaço a aumentarem.Restolhar que o silêncio da noite e a espessura do nevoeiro tornavam num ruído pavoroso, pelo que deixava adivinhar.

As árvores donde o barulho provinha ficavam a uns bons cinquenta metros do local da sentinela onde nos encontrávamos. Até lá, era tudo campo aberto e liso, qual pista onde pousavam os helicópteros que traziam feridos graves, evacuados das zonas de guerra. O nevoeiro/cacimbo não deixava enxergar nada a um metro de distância.Tensão máxima!

Dedo no gatilho da FBP na mão esquerda e Walter na mão direita. Rambo a cem por cento!!

Era imperioso fazer algo. Despoletar uma acção. Tomar uma iniciativa! Qual?! Tudo seria preferível , excepto continuar naquela incerteza e viver naquela mortífera ansiedade.

Ir ao local verificar o que se passava. Não restava outra alternativa!Foi sorteado que seria eu e o cabo a lá ir! E fomos!!!! Em corrida, aos zig-zags, como tinham ensinado na recruta.

Como já advinharam por eu estar aqui a contar a história, nada de mortal se passou.Pois não... Constatámos que nada havia sob as árvores. Esquadrinhámos uns cinquenta metros, para baixo e para cima e, nada! Nem sinal de "turra"! Um tanto mais relaxados, parámos para pensar e decidir o que fazer de seguida.

Nesta paragem, levámos em cima com uns bem grossos pingos de água que caíam das árvores.

Eureka!O cerrado nevoeiro formava grossas gotas de água nas folhas das árvores que, quando escorregavam para o solo, provocavam, no seu impacto com as folhas secas, o famoso restolhar!!

Regressámos, esclarecemos os restantes e... Rimos, chorámos, berrámos e gritamos epítetos uns aos outros, numa forma incontrolada de descompressão.E acabámos descomprimindo no bar de apoio ao pessoal de serviço, esgotando as cervejas que por lá restavam, num frigorífico já mal recheado àquelas horas da madrugada.Há sempre umas excepções às regras. Até na guerra!

Foi debelado "um caso de guerra" sem disparar um tiro!!

Arnaldo silva
Felizmente reformado

1 comentário:

  1. Caríssimo Arnaldo:
    Gostei da sua história, e pode ter a certeza, de que tudo isso fazia parte da guerra, não só em Angola, mas em todas as guerras. São essas histórias e esses momentos a que alguns como eu que fomos estruturados para fazer essa guerra, que chamamos de "descompressão". Todas essas histórias teem tanto valor, como as emboscadas os assaltos às posições do inimigo, aos mortos, aos feridos, tudo isso faz parte de um todo, que deveria ser dado a conhecer ao Povo Português. Infelizmente, vive-se num país de envergonhados do seu passado. Honestamente gostei e ri! Eram esses os bons momentos que se saboreavam na Guerra a "Descompressão"!
    Parabens

    Manel Piorna

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