domingo, 6 de janeiro de 2008

ÓBITO

(Luís Pacheco)

Morreu Luiz Pacheco, que era amigo pessoal do Jovito do Liceu de Faro.

O escritor Luiz Pacheco morreu a noite passada dia 5, no Hospital do Montijo, aos 82 anos.

Entre os seus textos mais célebres contam-se ‘Comunidade’ (1964), ‘O Libertino Passeia por Braga, a Idolátrica o seu Esplendor’ (1970) ou ‘O Caso das Criancinhas Desaparecidas’ (1981), todos eles incluídos no volume Exercícios de Estilo (Edições Estampa).
Rótulos como «escritor maldito», «libertino» ou «abjeccionista» acompanharam-no ao longo da sua longa e prolífica carreira literária, mas Pacheco nunca pareceu incomodar-se com isso.
Polémico, incisivo e frontal, fez de uma vida de excessos e carências a expressão máxima da sua liberdade e a matéria-prima da sua escrita. Foi alcoólico, teve relações de ocasião com parceiros de ambos os sexos, perdeu de vista vários dos seus oito filhos, chegou a ser preso por se envolver com raparigas menores e viveu com grandes dificuldades financeiras, fruto da condição quase crónica de desempregado.

Mas Pacheco trabalhou, e muito. Além dos livros – uma parte significativa dos quais só se conseguem encontrar em alfarrabistas – deixou um grande número de textos dispersos em jornais e revistas (as colaborações mais recentes com a imprensa saíram no Diário Económico e no Público, nos anos 90).
É à sua visão como editor (fundou a mítica Contraponto em 1950) que Mário Cesariny, Herberto Hélder e Natália Correia, entre muitos outros nomes consagrados, deveram a divulgação das primeiras obras.
EXCERTOS DE COMUNIDADES
Estendo o pé e toco com o calcanhar numa bochecha de carne macia e morna; viro-me para o lado esquerdo, de costas para a luz do candeeiro; e bafeja-me um hálito calmo e suave; faço um gesto ao acaso no escuro e a mão, involuntária tenaz de dedos, pulso, sangue latejante, descai-me sobre um seio morno nu ou numa cabecita de bebé, com um tufo de penugem preta no cocuruto da careca, a moleirinha latejante; respiramos na boca uns dos outros, trocamos pernas e braços, bafos suor uns com os outros, uns pelos outros, tão conchegados, tão embrulhados e enleados num mesmo calor como se as nossas veias e artérias transportassem o mesmo sangue girando, palpitassem, compassadamente, silenciosamente, duma igual vivificante seiva.

É um bicho poderoso, este, uma massa animal tentacular e voraz, adormecida agora, lançando em redor as suas pernas e braços, como um polvo, digo: um polvo excêntrico, sem cabeça central, sem ordenação certa (natural); um grande corpo disforme, respirando por várias bocas, repousando (abandonado) e dormindo, suspirando, gemendo. Choramingando, às vezes. Não está todo à vista, mas metido nas roupas, ou furando aos bocados fora delas. Parece (acho eu, parece) uma explosão que atingiu um grupo de gente parada e, agora, o que está ali são restos de corpos mutilados : uma pernita de criança, um braço nu sòzinho, um punho fechado (um adeus?... uma ameaça?...), um tronco mal coberto por uma camisa branca amarrotada. Ou seria, então, talvez, um desabamento súbito, uma avalanche de neve encardida, que nos cobriu a todos, ao acaso, aos bocados, e para ali ficámos, quietos e palpitando, à espera, quietos e confiantes, dum socorro improvável, cada vez mais (e as horas passam!) improvável, incerto, aguardando a luz da manhã, que chega sempre, que acaba sempre por chegar, para vivos e mortos, calados ou palrantes, ladinos ou soterrados, os que já desistiram da madrugada e os que, ainda, contra qualquer lógica, contra qualquer quantidade de esperança, confiam ainda e esperam.
Recolha de
João Brito Sousa

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