segunda-feira, 14 de abril de 2008

DA IMPRENSA / EXPRESSO


UMA NOVA PONTE
por Miguel SousaTavares

Confesso que não tinha pensado muito no assunto, talvez porque, tendo gasto demasiado tempo e atenções a perceber bem o que era o embuste do aeroporto da Ota ou o luxo do TGV não me sobrou igual atenção e disponibilidade para olhar mais de perto a questão da nova ponte sobre o Tejo.. Resolvida, parcialmente bem, a questão do novo aeroporto de Lisboa (eu faço parte do restrito número dos que ainda não estão convencidos da necessidade de novo aeroporto), resolvida, como mal menor ou bem inútil, a megalomania do TGV, aí está, por acréscimo e decorrente das duas decisões anteriores, a nova ponte sobre o Tejo.

Escutando e lendo o que se dizia sobre o assunto, concluí que a discussão versava apenas sobre a sua melhor localização: o Governo queria Chelas-Barreiro, a CIP queria Beato-Montijo, e alguns outros, a que se veio juntar o líder do PSD, queriam Algés-Trafaria. E foi só quando o Governo apresentou a sua “decisão final” por Chelas-Barreiro (já se percebera que, tendo cedido no aeroporto, não iria ceder na ponte, por uma questão de imagem de autoridade), que eu comecei a olhar melhor para os fundamentos da decisão e, de súbito, me assaltou a pergunta: para que serve a nova ponte?

Vejamos: a ponte será rodoviária, com seis faixas de rodagem, e ferroviária, com duas faixas para o TGV e outras duas para comboios normais. Olhemos então para cada uma destas utilidades.
A utilidade rodoviária é incompreensível: a Vasco da Gama, inaugurada há dez anos, está muito longe, longíssimo, do limite da sua capacidade e não será o trânsito do novo aeroporto de Alcochete que a irá esgotar. A necessidade de fazer uma nova estrutura rodoviária para uma procura que não existe é, aliás, uma tendência que se vem acentuando no lançamento de uma teia de auto-estradas, anunciadas com orgulho pelo Governo ou de paternidade reclamada pela oposição.

Há dias, um casal estrangeiro meu amigo, que tinha acabado de conhecer a A-2 e a A-6 num dia de semana, comentava comigo que nunca, em lado algum, tinha visto auto-estradas tão boas e tão desertas, ao que eu respondi que nós éramos um país bem mais rico do que as estatísticas económicas mostravam: um terço da população activa, com crise ou sem ela, viaja compulsivamente para destinos exóticos distantes, no Verão, no Natal e na Páscoa; temos 1,5 fogos por habitante e continuamos desenfreadamente a construir segundas habitações no que resta de litoral ou interior ainda disponível; temos mais de um automóvel por família e mais de um telemóvel por habitante; e temos auto-estradas para todo o lado e algumas sem portagens, que fazem corar de inveja esses casos de sucesso económico sem auto-estradas nem TGV que são a Irlanda, a Suécia, a Noruega, a Dinamarca. Logo, a nova travessia rodoviária do Tejo em Lisboa (ainda no ano passado se inaugurou mais uma, em Santarém) é inútil para as necessidades existentes.

Mas é, sem dúvida, muito útil para as necessidades a criar. Se eu vivesse no Barreiro - ou no Montijo ou na Trafaria - de certeza que acharia brilhante a ideia de me fazerem uma ponte à porta de casa e ligada a Lisboa: em vez de vir de barco, vinha de carro. Mas aí, justamente, é que está o gato: a nova ponte, segundo o estudo do LNEC, terá um tráfego de 65.000 carros/dia em cada sentido, dos quais apenas uma parte será roubada à ponte 25 de Abril. Assim, mais uns 40.000 carros chegarão todos os dias a Lisboa, ajudando a congestionar uma das saídas da cidade, já hoje congestionada ao final do dia, e tratarão de ajudar a entupir mais ainda o trânsito no centro e a agravar a situação caótica do estacionamento.

Ou seja: não servindo para resolver um problema que não existe, a nova ponte vai, por si só, criar um problema novo. Não deixa de ser notável que o presidente da Câmara, António Costa (que mantém teimosamente em vigor a demagógica proibição de circulação de carros na Baixa, aos domingos) a única coisa que tenha a dizer sobre isto é que espera receber parte das receitas das portagens: consente que durante cinco dias da semana haja mais 40.000 carros na cidade e, aos domingos, dá uma de politicamente correcto!

Mas a nova ponte vai servir também para comboios. Para comboios normais e para o TGV Lisboa-Madrid. E aqui é que as coisas se tornam ainda mais chocantes: o TGV Lisboa-Madrid, confessado pela própria secretária de Estado dos Transportes, é uma obra cujo investimento nunca será recuperado - é a fundo perdido - e cuja exploração “dificilmente será rentável”. Isto é, os custos da sua exploração serão inferiores às receitas e pela simples razão de que não há clientes que justifiquem o TGV: é uma obra reconhecidamente inútil à partida e que só vai para a frente porque Sócrates, à semelhança de todos os outros construtores que o antecederam, acha que “Portugal não pode ficar fora da rede europeia de alta velocidade”. Parece que é uma questão de prestígio patriótico. Vamos, pois, ter uma ponte para servir um TGV que não serve para nada, a não ser para perder dinheiro do Estado. Se isto não consegue escandalizar os portugueses, já nada mais conseguirá.

Resta a utilidade de servir comboios normais que servirão o novo aeroporto. Independentemente de eu ainda não estar convencido também da necessidade do novo aeroporto, acredito que, sendo uma coisa necessária, a outra também seja e que esta é a melhor solução para tal.

Mas, sendo assim, a nova ponte poderia ser simplesmente uma ponte ferroviária de duas vias para comboios normais. Seguramente que teria muito menos impactos ambientais e paisagísticos sobre as vistas de Lisboa, minimizaria em muito os danos à navegação do estuário do Tejo de que se fala e, certamente, não custaria os 1.700 milhões de euros anunciados pelo Governo - e que, se tivermos sorte e conforme é de costume, acabarão por ser apenas o dobro. Além de mais, evitava-se ainda uma factura extra e não contabilizada, que é o custo da indemnização a pagar à Lusoponte, concessionária da ponte Vasco da Gama. Pois que se descobriu agora que anteriores governos, decerto assessorados por excelentes advogados, garantiram à Lusoponte, não só a prorrogação do prazo da concessão na vigência do contrato, mas ainda a exclusividade das receitas das travessias do Tejo, sob pena de indemnização. É verdade, sim, houve quem, em nome do Estado português, cedesse a uma entidade privada o direito exclusivo à cobrança de portagens na travessia de um rio - coisa jamais vista desde o feudalismo medieval.

E assim, meditando no assunto, cheguei a esta conclusão, seguramente absurda: a nova ponte Chelas-Barreiro não serve para nada. Isto é, serve para alimentar o lóbi das obras públicas, o mais poderoso do país, e a crença de que o Estado deve ser o motor da economia e o maior cliente da mal chamada iniciativa privada, deste modo desmentindo na prática todas as anunciadas apostas de José Sócrates na qualificação, nas novas tecnologias e na investigação como instrumentos de transformação e modernidade do país. Esta é a mesma velha política de sempre e uma das raízes mais fundas do nosso atraso económico e da perversão da nossa democracia.


Publicação de
João Brito Sousa

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