AS “VENDAS” DOS BRACIAIS
- A Taberna? Trata de quê?, de vinho, de bêbados?
- Não. Trata da vida, da vida de pessoas infelizes.
- Faz chorar?
- Faz pensar.
- Pensar
- A Taberna? Trata de quê?, de vinho, de bêbados?
- Não. Trata da vida, da vida de pessoas infelizes.
- Faz chorar?
- Faz pensar.
- Pensar
- Sim, a Taberna é um livro que ensina.
Baptista-Bastos em o Cavalo a Tinta da China.
“A Gervásia esperara o Lantier até às duas hora da manhã. Depois, tiritando dos pés à cabeça por se ter deixado estar em camisa ao ar frio da janela, tinha adormecido, deitada através da cama, febril, a face encharcada em lágrimas. É assim que começa a obra “A Taberna” de Emilio Zola que aqui é citada por Baptista-Bastos..
No meu tempo de menino, nos Braciais havia a venda do Ti Zé Manelinho, apenas. Nasci com aquele nome em casa e sem saber por que é que aquele local de comércio era denominado de “A VENDA”. Hoje até perguntei à minha mulher como eram chamados, na sua terra de origem, os locais de venda de bens alimentares, líquidos e sólidos, necessários para satisfação de necessidades correntes. “É a Venda.” disse ela. Concluí que talvez a palavra “Venda” viesse substituir a expressão local de venda, o local onde se vendiam os bens. Para simplificar, ficou venda... tudo bem! Consultado o dicionário, diz que Venda é o estabelecimento humilde, aberto por negros libertos da escravidão; ou pequena mercearia e bar; ou só mercearia. Está explicado.
Estávamos nos anos cinquenta, no tempo do Presidente CARMONA, aquele que dizia: “Vemo-nos quando nos virmos”, e as pessoas viviam com muitas dificuldades. No Inverno, quando chovia, praticamente não havia trabalho nos campos. No Verão, desciam ainda os alentejanos para perto da cidade de Faro e os recursos financeiros disponíveis das populações do campo eram praticamente os mesmos ou quase nulos. Fosse no Inverno ou no Verão, a minha mãe mandava-me à Venda buscar pão ou outra coisa qualquer, mas não levava dinheiro... porque, simplesmente, a minha mãe não o tinha e dizia-me: “João, diz à vizinha que aponte!” E lá ia eu às compras, trazia a mercadoria e, quanto a pagamento... ia para o livro.
Portanto, a “Venda” desempenhou, até à chegada das grandes superfícies, uma grande função comercial e social, não só financiando a aquisição de bens de primeira necessidade, como também promovendo o encontro e convívio de pessoas, dentro do contexto social vigente. Pela abertura, aí pelas sete horas da manhã, os homens apareciam a tomar o seu copo de aguardente (No Algarve, não se usa muito a expressão “mata bicho”.) e contratar algum trabalhador para esse dia, para a semana em curso ou como trabalhador aturado (trabalho vitalício). Depois a Venda retomava o seu circuito normal e vendia uns maços de cigarros e uns copos de aguardente e de mercearias... o que fosse necessário. As Vendas, hoje, praticamente, acabaram mas mantém-se ainda, no shomens, o velho habito do copo de aguardente pela manhã, em muitas aldeias e sítios. De manhã diz o meu tio Eusébio faz isso... e lá vai um “calcezinho”... every days.
À noite, a venda era mais frequentada. Vinha o Ti Zé da Cova que morava ali perto, o Ti Barras, o Ti Aníbal, o Ti Luís Alcantarilha, o Ti Zé Lobacota e o irmão Joaquim, o Ismael Janeira e outros. Falavam de tudo: dos preços dos produtos, dos gados, disto e daquilo. Para dar lucro à Venda, pediam ao Zé Manelinho, o proprietário, que servisse uma garrafinha de água do Castelo com aguardente. Custava quinze tostões e passava entre todos. Se não chegasse para alimentar a rodada, repetia-se a dose, pedindo outra. Ali estavam até às onze horas da noite, mais ou menos, e depois iam-se embora. E diziam: “Bom, meus senhores...até à primeira!”, querendo dizer que se despediam agora até à primeira vez que se encontrassem.
Uma vez, assisti lá na Venda a uma coisa gira. Apareceram por lá dois rapazotes novos que iam casar com duas irmãs. Não sei como é que a coisa começou, mas... às tantas, os dois rapazes casadoiros, estavam a discutir sobre quem tinha mais dinheiro para o casamento. Eu só aqui nesta algibeira tenho cinco contos, dizia um deles. E dizendo isto, colocava as notas em cima do balcão, para que fossem vistas por todos. Agora fala tu..... mostra lá o teu... O outro, que não tinha nada ali à mão, entupiu... mas uma das outras pessoas que estavam presentes e assistia à conversa, na Venda, passou-lhe seis mil para a algibeira e disse-lhe baixinho.. mostra, o que este fez, com uma interpretação magistral, à Raul Solnado, dizendo, aqui tens ó meu sacana... e mostrou que tinha mais dinheiro que o primeiro. A “massa” vinha dos que estavam presentes, que a tinham ali e a iam, à vez, colocando na mão dos rapazes, o que eles iam apresentando em cima da mesa, dizendo ... eu tenho tanto e provo isso aqui e agora... e tu não tens nada, disseste que tinhas e mais não sei quanto... de tal modo que o visado teria de dirigir ao seu alimentador financeiro de momento, para dar ânimo à conversa. Coisas de camponeses .. os senhores compreendem...
Hoje, que chegaram os Super mais os Hiper, a Venda terminou a sua função social, que foi grande em tempo da Guerra e de restrições. Mas, enquanto durou, ajudou muita gente a sobreviver. Era lá que se vendia a sardinha estibada. ou sardinha amarela... e eu ia lá comprar .. ó vizinha quero levar sardinhas e a minha mãe pede para apontar. Era a unigrafia em pleno.
A Venda... apesar de tudo, uma saudade! Patrão, vai um copo?!...
João Brito Sousa
Baptista-Bastos em o Cavalo a Tinta da China.
“A Gervásia esperara o Lantier até às duas hora da manhã. Depois, tiritando dos pés à cabeça por se ter deixado estar em camisa ao ar frio da janela, tinha adormecido, deitada através da cama, febril, a face encharcada em lágrimas. É assim que começa a obra “A Taberna” de Emilio Zola que aqui é citada por Baptista-Bastos..
No meu tempo de menino, nos Braciais havia a venda do Ti Zé Manelinho, apenas. Nasci com aquele nome em casa e sem saber por que é que aquele local de comércio era denominado de “A VENDA”. Hoje até perguntei à minha mulher como eram chamados, na sua terra de origem, os locais de venda de bens alimentares, líquidos e sólidos, necessários para satisfação de necessidades correntes. “É a Venda.” disse ela. Concluí que talvez a palavra “Venda” viesse substituir a expressão local de venda, o local onde se vendiam os bens. Para simplificar, ficou venda... tudo bem! Consultado o dicionário, diz que Venda é o estabelecimento humilde, aberto por negros libertos da escravidão; ou pequena mercearia e bar; ou só mercearia. Está explicado.
Estávamos nos anos cinquenta, no tempo do Presidente CARMONA, aquele que dizia: “Vemo-nos quando nos virmos”, e as pessoas viviam com muitas dificuldades. No Inverno, quando chovia, praticamente não havia trabalho nos campos. No Verão, desciam ainda os alentejanos para perto da cidade de Faro e os recursos financeiros disponíveis das populações do campo eram praticamente os mesmos ou quase nulos. Fosse no Inverno ou no Verão, a minha mãe mandava-me à Venda buscar pão ou outra coisa qualquer, mas não levava dinheiro... porque, simplesmente, a minha mãe não o tinha e dizia-me: “João, diz à vizinha que aponte!” E lá ia eu às compras, trazia a mercadoria e, quanto a pagamento... ia para o livro.
Portanto, a “Venda” desempenhou, até à chegada das grandes superfícies, uma grande função comercial e social, não só financiando a aquisição de bens de primeira necessidade, como também promovendo o encontro e convívio de pessoas, dentro do contexto social vigente. Pela abertura, aí pelas sete horas da manhã, os homens apareciam a tomar o seu copo de aguardente (No Algarve, não se usa muito a expressão “mata bicho”.) e contratar algum trabalhador para esse dia, para a semana em curso ou como trabalhador aturado (trabalho vitalício). Depois a Venda retomava o seu circuito normal e vendia uns maços de cigarros e uns copos de aguardente e de mercearias... o que fosse necessário. As Vendas, hoje, praticamente, acabaram mas mantém-se ainda, no shomens, o velho habito do copo de aguardente pela manhã, em muitas aldeias e sítios. De manhã diz o meu tio Eusébio faz isso... e lá vai um “calcezinho”... every days.
À noite, a venda era mais frequentada. Vinha o Ti Zé da Cova que morava ali perto, o Ti Barras, o Ti Aníbal, o Ti Luís Alcantarilha, o Ti Zé Lobacota e o irmão Joaquim, o Ismael Janeira e outros. Falavam de tudo: dos preços dos produtos, dos gados, disto e daquilo. Para dar lucro à Venda, pediam ao Zé Manelinho, o proprietário, que servisse uma garrafinha de água do Castelo com aguardente. Custava quinze tostões e passava entre todos. Se não chegasse para alimentar a rodada, repetia-se a dose, pedindo outra. Ali estavam até às onze horas da noite, mais ou menos, e depois iam-se embora. E diziam: “Bom, meus senhores...até à primeira!”, querendo dizer que se despediam agora até à primeira vez que se encontrassem.
Uma vez, assisti lá na Venda a uma coisa gira. Apareceram por lá dois rapazotes novos que iam casar com duas irmãs. Não sei como é que a coisa começou, mas... às tantas, os dois rapazes casadoiros, estavam a discutir sobre quem tinha mais dinheiro para o casamento. Eu só aqui nesta algibeira tenho cinco contos, dizia um deles. E dizendo isto, colocava as notas em cima do balcão, para que fossem vistas por todos. Agora fala tu..... mostra lá o teu... O outro, que não tinha nada ali à mão, entupiu... mas uma das outras pessoas que estavam presentes e assistia à conversa, na Venda, passou-lhe seis mil para a algibeira e disse-lhe baixinho.. mostra, o que este fez, com uma interpretação magistral, à Raul Solnado, dizendo, aqui tens ó meu sacana... e mostrou que tinha mais dinheiro que o primeiro. A “massa” vinha dos que estavam presentes, que a tinham ali e a iam, à vez, colocando na mão dos rapazes, o que eles iam apresentando em cima da mesa, dizendo ... eu tenho tanto e provo isso aqui e agora... e tu não tens nada, disseste que tinhas e mais não sei quanto... de tal modo que o visado teria de dirigir ao seu alimentador financeiro de momento, para dar ânimo à conversa. Coisas de camponeses .. os senhores compreendem...
Hoje, que chegaram os Super mais os Hiper, a Venda terminou a sua função social, que foi grande em tempo da Guerra e de restrições. Mas, enquanto durou, ajudou muita gente a sobreviver. Era lá que se vendia a sardinha estibada. ou sardinha amarela... e eu ia lá comprar .. ó vizinha quero levar sardinhas e a minha mãe pede para apontar. Era a unigrafia em pleno.
A Venda... apesar de tudo, uma saudade! Patrão, vai um copo?!...
João Brito Sousa
Bonita descrição dos antigos locais de venda de géneros e de convívio chamados de Vendas; Tabernas; Tascas e também de Mercearias.
ResponderEliminarConheci tudo isso, e ainda recordo de também mandar "apontar"!!!
Cumprimentos
AGabadinho