ANTÓNIO SIMÕES JÚNIOR – O HOMEM E O ESCRITOR
1. INTRODUÇÃO
Quem pretender elaborar um mero resumo biográfico sobre António Simões - nome por que foi registado e ao qual acrescentaram o apelido “Júnior”, para não se confundir com o do pai, depara ainda hoje com a falta e, o que é mais grave, com inexactidões, de elementos indispensáveis à verdadeira narração e compreensão da vida deste olhanense, que foi militante político, operário, escritor e que toda a vida estudou e pesquisou.
Mas a vocação e a ambição que nele se sentia, o que verdadeiramente o deleitava era escrever, fazendo dele um escritor compulsivo. Foi feliz como escritor, pesquisador e estudioso, mas foi profundamente infeliz na sua vida matrimonial. Infeliz, ainda, por ter vivido cerca de dois terços da sua vida fora da Pátria, concretamente, na Argentina.
2. NASCIMENTO, INFÂNCIA, JUVENTUDE
São dados certos que nasceu a 22-09-1922, no sítio de Poço Longo, freguesia de Quelfes, concelho de Olhão. Filho de António Simões, natural de Faro e de Angelina Ignacio, nascida em Quelfes, Olhão. Com o filho em gestação ou pouco depois dele ter nascido, o pai Simões emigra para a Argentina. Júlio Fradinho (1), que conviveu com Simões Júnior, em Buenos Aires, assevera que este só conheceu o pai na Argentina.
Diz-se que completou a instrução primária – e o seu desenvolvimento intelectual parece confirmar a afirmação –, mas não se sabe que escola frequentou: se a escola do “Lopinhos” (2), se da Paróquia (ou do Padre) ou se teve a sorte de ter ingressado na Oficial, mercê de algum pedido forte, pois a capacidade de admissão desta última escola era ínfima em relação à população em idade escolar, carência que se manteve durante muitos anos.
Simões Júnior e Manuel Madeira conheceram-se, quando jovens, movidos pela mesma apetência pelos livros nos quais esperavam encontrar respostas para todas as interrogações que os assaltavam. E o local de encontro foi naturalmente a Livraria Farracha, na Rua do Comércio, em Olhão, que na época, à falta de estruturas institucionais próprias, funcionava como um “centro cultural”, agindo o seu proprietário, conhecido como opositor ao Regime - como o “animador” e o “conselheiro”! Se juntarmos a estes o Lopes de Brito e o Raul Martins Veríssimo (o último dos quais haveria de protagonizar uma das mais rocambolescas fugas às garras da Pide), temos aqui um núcleo que esteve na origem da grande movimentação política que implantou e desenvolveu em Olhão o MUD Juvenil, impulsionador das lutas reivindicativas da juventude e, pelo seu dinamismo, das camadas adultas.
O fim da II Guerra Mundial foi uma alegria para o Mundo, e, inclusive, para Portugal. O povo de Olhão, mesmo receando o aparelho policial do Estado Novo, não se conteve e saiu à rua, desfilando pela Avenida, gritando”Viva a Paz!”. O Nazi-Fascismo fora derrotado e vitoriosos saíram os Aliados, dos quais os povos esperavam liberdade, emprego e justiça social.
Olhão, em 1945, estava no auge do seu desenvolvimento económico em consequência do pleno labor das suas fábricas de conservas, da sua frota pesqueira e do bom momento da economia associada. A população cresceu que bastasse, recebendo gente que vinha atraída pelo “el dorado” olhanense. Haja em vista o fenómeno das “quarteireiras”. As ideias socialistas e comunistas encontram um campo propício à sua implantação, mau grado a existência da Pide. Simões Júnior, que lera bastante sobre os fundamentos do Comunismo e seguia atentamente a evolução da URSS, constituída após a célebre Revolução de Outubro de 1917, adere à célula do PCP de Olhão.
A sua residência era vizinha dum pólo de grande concentração industrial (zona da E.N. 125, no troço da Av. Almirante Reis – Quatro Estradas, delimitada a sul pelo Caminho de Ferro), oferecendo excelentes condições de contacto com o respectivo operariado.
Simões Júnior, nas horas de trabalho, envergava o tradicional fato-macaco, mas, acabado o serviço diário, vestia-se bem. Contraditoriamente, ou por desejar agradar às raparigas, até chapéu “à diplomata” chegou a usar. À noite, frequentava o Café Avenida, no qual situou o seu poemeto “Excitação – Café Avenida – às 23 horas”, onde se encontrava com os amigos e cujo ambiente lhe serviria de argumento em mais de um dos seus livros. E é com o amigo Madeira que, nas folgas, dava grandes passeios pela Avenida da República e junto ao mar. Porque o mar assemelhava-se a “alguém” que interpelasse e transmitisse mensagens que precisavam de ser descodificadas…
3 A JORNADA DE BELA MANDIL E O CASAMENTO
Em 23 de Março de 1947 dá-se a Jornada de Bela Mandil (Olhão), um encontro de confraternização da juventude algarvia, que se queria fosse um Festival, para a organização do qual o Simões trabalhara clandestinamente. Ao fim de algumas horas, “os jovens foram surpreendidos por uma brigada da P.S.P. que os intimou, por ordem do Comandante da Polícia de Faro, a retirarem-se imediatamente da mata”(6).
Mas à P.S.P. juntou-se a G.N.R., dispondo esta de metralhadoras posicionadas nos pontos altos do percurso, que era um caminho que conduzia à E.N. 125, e desta a Olhão. A dispersão, porém, só se consumou quando a G.N.R., entre o Cemitério e a Ponte da C.P., carregou sobre a multidão, disparando tiros para o ar. Assim, …”no resto desse dia e noite e durante mais dois ou três dias, foi Olhão patrulhada pela G.N.R., a cavalo (7). O ambiente era, a um tempo, opressivo e apreensivo. Temia-se que fossem feitas prisões. Simões admitia estar incluído no rol. Mas não é isso que o impede de, no dia seguinte ao Encontro, em 24-03.1947,casar com Silvina dos Santos Pereira, natural de Tavira. Haviam-se conhecido em Olhão, pois ela vivia ou teria familiares a residir na Rua Almirante Reis (8), habitualmente, frequentada por Simões, por ser ponto de passagem para a sua residência.
4. A PUBLICAÇÃO DO 1º. LIVRO E A “FUGA”PARA MARROCOS
Entretanto, tem o livrinho “Poemas Juvenis” a imprimir na tipografia “O Algarve”, em Faro, mas como só irá ficar pronto em 22-11-1947, encarrega o seu amigo Raul Veríssimo de o receber e distribuir, posto que tem um novo e importante projecto pessoal a cumprir e não pode esperar até àquela data.
Na verdade, uma vez casado, receando ser preso a todo o momento e sendo certo que o trabalho começava a escassear na vila, resolve “fugir” para Marrocos, - o que terá acontecido no fim do verão de 1947. Junta-se assim à saga de muitos e muitos olhanenses e naturais de outras terras do Algarve, fugidos ao desemprego. Parte com a sua noiva numa lancha, saveiro ou “enviada” no que seria uma espécie de “viagem de núpcias”arriscada, que poderia ter-se convertido numa “viagem para a morte”, sem que ambos tenham provado o mel e o fel dos anos vindouros
5. ARGENTINA – O SONHO, A OBRA, O DRAMA
Marrocos foi para ele um trampolim para um “salto”maior, embora tenha gostado do que viu e viveu nesta parte do Magreb. Para quem só viajara de Faro a Vila Real de Santo António e de Olhão a Lisboa, Marrocos, tão perto e tão diferente na fala, no vestuário, na paisagem e nos usos e costume, encantou-o. Sobre esse país, então um protectorado francês, escreveu um livro, Marruecos Hoi e nele situou a acção de outros, nomeadamente, La Aventura de Casablanca. Deu-lhe até a oportunidade de escrever vários artigos para a “Voz do Sul”, de Silves.
Mas o objectivo, o sonho, é alcançar a Argentina, onde vive e trabalha o pai, que não conhece. Chega, na companhia da mulher, em 22-03-1949, e fixa residência na província de Buenos Aires.
É Presidente da Argentina Juan Domingos Péron, cuja política tinha algo de comum com a do Estado Novo, à qual escapara.
Fugira do regime férreo português, mas não só teve de conviver com o peronismo como, entre os anos 1976 e 1983, que “tratar” com as ditaduras militares, que utilizaram os meios mais sujos para liquidar os adversários. Mas assistiu ainda ao movimento das Mães da Praça de Maio, que reclamou o castigo dos assassinos!
Talvez por isso, ao publicar, em 1953, o seu primeiro livro em língua castelhana, La Realidad Portuguesa y La Politica Dictatorial, substitui o seu nome pelo pseudónimo de S. Linofre e manda imprimi-lo em Montevideu (Uruguai).
Encontra o pai, que possui uma pequena fábrica, com o que ganha a vida. Trabalha – e a mulher, Silvina, também - para sustentar a casa. Lê e escreve nas horas vagas, que são sempre poucas. Ao mesmo tempo, vai procurando – e consegue – inserir-se nos meios literários e progressistas não só de Buenos Aires como do Brasil e Angola, além de manter os laços que o ligavam à revista “Vértice”, de Coimbra, desde os tempos da sua juventude, em Portugal. Colabora em cerca de 50 jornais e revistas de várias origens, nomeadamente: “Subúrbio”, “Princípios” e “Veladas”, da Argentina -sendo, desta última, secretário de redacção - revista SUL (Brasil), no “Diário Ressurge, Goa” e em “Cultura Angolana”. Além do mais, tem que estudar para dominar o castelhano, língua que passa a adoptar, por indispensável, quer para uso corrente quer porque escreve sobretudo para os argentinos ou latino-americanos.
De acordo com Júlio Fradinho, “O Simões tinha casado com a Literatura”. Na verdade, ele estava cheio de projectos para escrever livros e outros trabalhos literários para jornais e revistas. A sua biblioteca era constituída por 30.000 volumes. A Silvina, sua mulher, alegre, vivendo no “romântico”país do tango e do mítico Gardel, tinha outras motivações… Trabalhando como assalariada, sentia-se livre e decidiu abandonar o lar. Mais tarde, pede para voltar. Simões acede em recebê-la em sua casa, mas com “vidas separadas”. Ao fim de algum tempo, a situação torna-se insustentável. Ela fecha-se num quarto, recusando todo o auxílio que o Simões estava disposto a prestar-lhe. Para lhe dar os alimentos, teve de fazer um buraco na porta por onde os introduzisse. Configurando um estado de demência mental, ela acaba por ser internada, falecendo em 16-04-1980!
Habituado a escrever desde a juventude, é só na Argentina que publica os seus livros de prosa: novelas, romances, ensaio e uma peça de teatro.
Quantos livros escreveu ele na totalidade? Uma inventariação completa não está feita ainda. O autor, em 1987, confidencia ter escrito 20 livros. É certo que ainda publicou algumas obras mais antes da sua morte, mas também é sabido que um deles, pelo menos, foi reescrito. Mas uma coisa é ter escrito, outra é ter publicado.
Por exemplo, sabe-se - ele o disse -, que o manuscrito do DOM JUAN desapareceu por completo quando do assalto à Editorial Futuro, onde o livro se encontrava para impressão, no tempo do governo de José Maria Guido. Perda que foi um trauma para o autor, posto que considerava ser a melhor obra que até então escrevera. Por outro lado, andou hesitante quanto ao título dar a alguns dos seus livros. Por exemplo: La Aventura de Casablanca esteve para se chamar La Ficción y la Realidad de Pedro Mascareñas, nome da personagem principal, “um filho de Olhão”.
Pela minha parte, respondo por 16 livros publicados: Poemas Juvenis, editado em Portugal, 1947; La Realidad Portuguesa y La Política Dictatorial, editado em Montevideu, 1953;Vieja Crónica de Olhão, editado em Montevideu, 1956;Pequeños Burgueses, 1957, editado na Argentina, como aliás todos os que se seguem; La Mariposa y el Cuervo, 1959; Marruecos, Ayer – Hoy, 1961; El Cuervo, 1973;La Piscina, 1973;Judas y Minos, 1977; Los Gatos, 1980; La Maquina de los Sueños, 1982;La Novela Imposible, 1986; Discurso sobre Velásquez, 1987; El Milagro, 1987; Cesário Verde de Memoria, 1989 e La Aventura de Casablanca, 1992. Não afirmo que esta inventariação esteja completa, mas esta é a minha contribuição para se atingir esse objectivo. Sabe-se que projectava escrever sobre Robespierre, a queda do Salazarismo e o 25 de Abril de 1974, e, muito particularmente sobre Olhão! Olhão, que de uma maneira ou de outra está presente em vários dos seus livros!
Vieja Cronica de Olhão e Pequeños Burgueses fazem parte da lista dos livros proibidos pela Censura do Estado Novo. Estes dois primeiros livros de prosa inserem-se no movimento neo-realista português, que o escritor viveu antes de emigrar. Era o tempo de Alves Redol, de Soeiro Pereira Gomes, Faure da Rosa e dos algarvios Manuel do Nascimento, Leão Penedo, A. Vicente Campinas, etc. Mas o mundo não pára, é feito de mudança. A URSS, a “pátria do comunismo real”, dissolveu-se. Ele próprio, como ser vivo, mudou. O país que adoptou para viver é outro, outros os problemas que se põem a essa sociedade. Os novos livros reflectem o amadurecimento do escritor como homem físico, psicológico e social. A experiência obtida na terra natal, em Marrocos e na Argentina, com uns saltos a Montevideu, as leituras aturadas, a sua vida do dia-a-dia, em suma, são as fontes que formam o “estado onírico” que o leva a escrever cada novo livro. Para trás ficaram as escolas, os movimentos, as tendências literárias…
Depois de ter escrito cerca de 20 livros e o mais que já foi dito, está doente. Desde a juventude que fuma. Ele pertencia àquele tipo de intelectual que acredita que o tabaco e o café dão inspiração…Só quando entra em crise é que se lembra que tem um “sopro” no coração. Possivelmente morreu em consequência de um dos males ou dos dois simultaneamente. Provavelmente no ano em que em Portugal se publicava a tradução de Vieja Crónica de Olhão (9).
Cumprira-se assim a sentença do Pe. António Vieira: “Portugal para nascer, o mundo para morrer”.O exemplar do livro que lhe foi enviado para a última morada conhecida, veio devolvido. Se o tivesse recebido, poderia ter repudiado a afirmação “Portugal não gosta de mim”. Os amigos que cá deixou “acordaram” tarde, mas, como diz o nosso povo: “mais vale tarde que nunca!”. O novo passo a dar agora é a tradução e publicação dos restantes livros publicados em língua espanhola. Há que trazer este nosso escritor ao pleno conhecimento dos algarvios em particular e dos portugueses em geral. Se não é maldito, então tem de ser arrancado ao esquecimento!
(1) Do grupo fundador de “O Jovem”, Olhão, 1947.Emigrou para a Argentina em 1951.
(2) “Escola” citada in Visto e Ouvido…em Olhão…Reflexões “, de José Barbosa.
(3) Autor do ensaio “Breve Retrato Psico-Cultural de António Simões Júnior”, in SOL XXI, nº.23, de 12/199.
(4) Actualmente R. António Henrique Cabrita.
(5) In Los Gatos, de A.S.J.
(6) In “Juvenil”, órgão do Mud Juvenil, publicado a seguir à Jornada de 23-03-1947.
(7) In Pequena Monografia de Pechão, de Francisco Guerreiro.
(8) Segundo o depoimento de Jorge Temudo, também do grupo de “O Jovem”, Olhão, 1947.
(9) Livro que na tradução portuguesa - Gráfica do Algarve, 1996 – recebeu o título Antiga Crónica de Olhão.
Publicação de
João Brito Sousa