terça-feira, 3 de junho de 2008

A CIDADE DE OLHÃO

A CIDADE DE OLHÃO
texto de Raul Brandão

Há meio século, Olhão, entranhado de salmoura e perdido no mundo, viva só do mar.

Os que não eram marítimos eram filhos ou netos de marítimos, contrabandistas uns e outros, pescadores costeiros e pescadores do alto que iam `a cavala a Larache. A pesca costeira, a das caçadas, fazia-se com groseiras, grandes espinheis, para o cachucho, o safio, a carocha, o ruivo, a abrótea e a pescada; e com a arte da chavega, em calões e botes., puxando a tripulação o aparelho para terra enquanto o arrais, numa pequena lancha, a calima, vigiava o lanço e dirigia a manobra. Havia muito peixe e a vida era extraordinária. Toda a noite o chamador batia de porta em porta com um cacete.

- Arriba com Deus mano João.

Nesta arte ia ao mar quem queria - os pequenos, os humildes e os fracos - todos de varino e por baixo nus.

- Levas a barça? - perguntava o arrais.

Era o essencial. Dizia-se de um homem pobríssimo:

- Aquilo é um homem sem barça nem lasca.

O dinheiro arrecadava-o o dono num monte com uma esteira por cima, e distribuía-o enfiando o braço por um buraco e tirando um punhado de cobre ao acaso:

- Toma lá!

Fazia as contas que entendia e os pobres diziam:

- O que ele tem enricado à custa daquela esteira!...

E as mães às filhas:

- Ó filha, Deus queira que não olhes para home que ande na arte!...

A pesca do alto fazia-se em caíques cobertos, de vinte e cinco a trinta toneladas, com duas velas triangulares. Este barco voava. Ia a Setúbal, a Lisboa, às Berlengas, ao Porto, e só voltava a casa no S. João, no Natal e nas festas grandes do ano. As mulheres esperavam pelos maridos com alvoroço - dando outra mão de cal nas casas. Tripulavam-no vinte e cinco homens e dois cães, que ganhavam tanto como os homens. E mereciam-no. Era uma raça de bichos peludos, atentos um a cada bordo e ao lado dos pescadores. Fugia o peixe ao alar da linha, saltava o cão no mar e ia agarrá-Io ao meio da água, trazendo-o na boca para bordo. O caíque pescava e vendia pela costa fora. Às vezes sucedia-Ihes estarem em Lisboa, abrigados do temporal, longe da terra em dias de festa, no da procissão do Senhor dos Passos, por exemplo - a que o marítimo nunca falta, vestindo o melhor fato e pondo a cartola na cabeça: - Compadre, vamos nós à procissão? - Ventania rija, vagalhão de meter medo na barra... - Por cima da água ou por baixo da água, vamos sempre. - E iam. Marítimos extraordinários, não usaram nunca agulha de marear: sabiam onde estavam pelo cheiro.

Publicação de
João brito Sousa

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