sábado, 11 de outubro de 2008

ENTREVISTA DE J.SARAMAGO


ENTREVISTA DE SARAMAGO
tarreta43@yahoo.com
«O Nobel não significou nada às portas da morte» Quando se juntam um escritor laureado com o Prémio Nobel e uma jornalista que conhece o homem e a sua obra em profundidade o resultado só podia ser bom. Pormenor: neste caso são marido e mulher. Eis uma conversa única entre Pilar, a entrevistadora, e Saramago, o entrevistado, por ocasião dos 10 anos do prémio mais importante da literatura universal Alterar tamanho A ENTREVISTA DE PILAR DEL RÍO A JOSÉ SARAMAGO DECORREU NA SALA PRINCIPAL DA BIBLIOTECA JOSÉ SARAMAGO, O PÓLO DA FUNDAÇÃO DO ESCRITOR EM LANZAROTE, QUE ACOLHE UM ESPÓLIO DE 15 MIL VOLUMES

Esta é uma entrevista que começa com um aviso e um pedido de Pilar del Río a José Saramago: «Duas coisas: primeiro, esta é uma entrevista em que a entrevistadora opina; segundo, respostas breves, está bem?» Ele contrapõe: «Bem, pedir-me respostas breves é o mesmo que pedir peras ao olmo.» Estão abertas as «hostilidades». As horas seguintes irão muito além da entrevista, passando também por acalorados debates e momentos de conversa. Assim não podia deixar de ser quando estão frente a frente duas pessoas que tão bem se conhecem.Garcia Marques disse sofrer como um cão quando vê os jornais. Sofres como um cão quando vês os jornais? Não, não sofro.

Creio que Gabo dramatiza um pouco esse choque, no entanto compreendo-o: também me desespera a falta de respeito pelo idioma. Porque somos o que pensamos, e dizemos aquilo que pensamos com palavras. Se as palavras são tão mal usadas, deturpadas, mal pronunciadas muitas vezes, que espécie de pensamento podem expressar? Isso é frustrante.Um jornalista fundamental em Espanha, Iñaki Gabilondo, afirmou, ao receber um prémio internacional, que a informação foi derrotada pelas empresas de comunicação. Agora, os jornalistas estão como que enfeitiçados pela serpente da política, pelos grandes financeiros, pelos espectáculos, pelo desporto, onde as vicissitudes humanas estão cada vez mais ausentes. Tens toda a razão. E agradeço, como cidadão, que Iñaki tenha tido a coragem de o dizer com tanta clareza. Porque o jornal que compramos todos os dias é, por assim dizer, uma fachada, não sabemos o que está por trás, que interesses levam a que uma vertente de um assunto seja mais desenvolvida e outras escamoteadas.

Achas que os meios de comunicação têm hoje mais influência no mundo do que as religiões? Influem de maneiras diferentes e segundo as circunstâncias, mas, no essencial, vão todos na mesma direcção...Os meios de comunicação reflectem a realidade ou moldam a realidade? Digamos que o jornalismo contribui para formar a realidade que lhe convém. Os dados que faltam aos cidadãos são tantos que as pessoas tendem a desinteressar-se do esforço para compreender o mundo em que vivem. Esta entrevista vai ser publicada numa revista cujo tópico é «o esplendor de Portugal». Essa imagem do esplendor de Portugal foi fomentada pelo fascismo e derivou de um falso sentimento patriótico. Tão falso que foi capaz de negar a sempre discutível verdade histórica, manipulando-a sem pudor.

Os hinos postos em circulação a partir de 1936, o da Mocidade Portuguesa, o da Legião, eram autênticos manuais em que se introduzia uma linguagem, um certo modo de pensar, uma forma degenerada de imaginar o que seria o Quinto Império, que nasceu com o padre António Vieira, e que Fernando Pessoa alimentou em tempos mais recentes. A história de Portugal, tão enaltecida por uma identidade resistente a tudo, não tem nada que ver com esse esplendor.Porquê? Porque nunca foi esse o nosso caminho. O tal esplendor teria que ver com um sentido messiânico dos destinos de Portugal. Na cabeça de muita gente esteve, e ainda permanece, essa ideia de que ser-se português é uma coisa diferente. Lembremo-nos da importância que teve a saudade à sombra do qual se definiram filosofias, modos de entender a história do país e a história universal... Tudo isto é bastante falso.

Quando se vive de ilusões é porque algo não funciona. A nossa imagem mais constante é a de alguém que está parado no passeio à espera de que o ajudem a atravessar para o outro lado. QUANDO O «EXPRESSO» PROPÔS À SUA ANTIGA COLABORADORA NA ÁREA DA CULTURA PILAR DEL RÍO QUE ENTREVISTASSE O PRÉMIO NOBEL PORTUGUÊS DA LITERATURA, A RESPOSTA VEIO PRONTA: «PARECE-ME BEM. ACEITO O DESAFIO» É curioso, fala-se do esplendor e não se fala dos êxitos actuais, das auto-estradas, da modernidade, mas sim da História. Surpreende que com um futuro tão incerto e um presente tão pouco saudável, com empresas em crise, falta de perspectivas, se fale de esplendor.

O esplendor de Portugal, quando aconteceu? Há um período em que, à distância, se pode falar de esplendor, a época dos Descobrimentos. Mas não haverá nenhum país que não tenha a sua época de esplendor real ou inventado. Se há país que pode orgulhar-se de uma época de esplendor, nos aspectos mais nobres da existência humana, é a Grécia. Mas isso foi há três mil anos, a Grécia de hoje é o furgão da cauda do comboio, como nós. Aqui volto à minha teoria das gerações: não vale a pena falar da identidade de um povo como algo inalterável, salvo as alterações da passagem do tempo e das condições económicas. À época e às gerações dos Descobrimentos sucederam-se épocas de decadência que correspondem, evidentemente, a outras gerações. Falemos de gerações, não de povos.Mas agora, neste momento, há algum motivo para estar satisfeito como geração? Não, creio que não.

Ou sim, haverá algum motivo. Podemos dizer que sobrevivemos até hoje, que certas condições económicas melhoraram.Que papel é, na realidade, o de Portugal? De subalternidade, evidentemente. Não temos força política, nem económica nem militar para chegar a Bruxelas e dizer o que entendemos e esperar que isso seja escutado. Bom, podemos ir, ouvem-nos, porque os membros da União Europeia podem expressar as suas opiniões, mas que elas sejam tomadas em conta, acho duvidoso. Isto não varia muito em relação ao passado: no século XIX um governo português ia ser apresentado ao Parlamento, mas não chegou a tomar posse porque o almirante da esquadra inglesa fundeada no Tejo não o permitiu.

Isto mostra o grau de dependência em que sempre estivemos. Disfarçada, no caso da Inglaterra, com esse belo nome de aliança e que, no fundo, não é aliança nenhuma, mas que um país está disponível para servir os interesses de outro país. A isso se chama globalização, que é só económica, não de direitos, ou deveres. Ainda não há muito tempo falava-se com frequência da formação de uma opinião pública poderosa capaz de intervir socialmente, algo que nos permitisse estar em paz com a nossa consciência, uma espécie de pacto de não agressão entre eu e mim mesmo... Dizer: conservo a minha independência de juízo, tenho uma opinião crítica. Estupendo, mas, para que serve isso?Serve para não ser cúmplice. Se os alemães se tivessem manifestado contra o nazismo e tivessem reivindicado os seus vizinhos judeus, não teriam sido cúmplices do Holocausto.

Calaram-se, foram cúmplices. Quantas mortes per capita pode aguentar a consciência dos cidadãos contemporâneos? Pôr a questão assim é como se houvesse um limite a partir do qual a consciência colectiva já não suportaria mais, mas não é assim. Convém-nos pensar, no entanto, que a consciência colectiva se rebelará um dia e impedirá que as aberrações sociais prossigam. Na verdade, não somos cúmplices, mas impotentes.Não estou de acordo: é cumplicidade, não impotência. Por exemplo, houve um acidente de avião em que morreram 154 pessoas, drama nacional e internacional. Porque era um avião. Quantos pobres terão de morrer por dia para que haja uma autêntica reacção social, um «até aqui chegámos» definitivo? Eu não vou tão longe nessa condenação.

Eça de Queiroz, numa crónica admirável, fala de uma reunião familiar em que estão sobretudo mulheres, tias, sobrinhas, sogra, conversando e fazendo os seus bordados e uma delas está a ler o jornal e vai dando informação às outras. A primeira coisa de que fala é de uma grande inundação na China em que morreram milhares de pessoas. Isto não desperta a mais pequena comoção; depois há outra notícia sobre qualquer coisa que aconteceu em Paris, igualmente trágica mas sem as mesmas consequências, e isso já causa um certo alarme. Finalmente, há uma pequena notícia que diz que a prima Joaquina caiu e torceu o tornozelo, e aí toda a gente se levanta para ir visitar a prima Joaquina. A proximidade de um desastre, mesmo que seja muito relativo, pode comover muito mais que uma tragédia longínqua, que acaba por tornar-se abstracta. Quatro mil chineses mortos nas inundações, em que pode isso tocar-nos?

Quantos mortos per capita aguenta esta sociedade supostamente herdeira dos grandes princípios do humanismo? Pois digo-te que não há limites, não há quem estabeleça o limite do insuportável. Em nome de que é que se estabeleceria um limite?Estabelecemos o limite dos rendimentos per capita, também haverá o dos mortos per capita... Perguntava Almeida Garrett: Quantos pobres eram precisos para fazer um rico? Vamos lá ver: toda a gente sabe que a riqueza se alimenta da pobreza.Não, as pessoas não sabem. Se os mestres do pensamento, se os partidos políticos de esquerda não o dizem, não sabem que são necessários muitos milhões de pobres para que haja um rico, simplesmente olham para os ricos com admiração, sem pensar que essa riqueza está construída sobre a pobreza de milhões de pessoas.

Vamos ver: todos sonham com ser ricos, ninguém sonha com a pobreza, não somos São Francisco de Assis, que renunciou a tudo para viver pobre e, acho eu, equivocado. Pelo facto de haver mais um pobre, não se resolvia o problema, mas sim combatendo a pobreza... Há um problema ético grave que não parece estar a caminho de ser resolvido.. Depois da II Guerra Mundial discutia-se na Europa sobre progresso tecnológico e progresso moral, se podiam avançar a par um do outro. Não foi assim, pelo contrário, o progresso tecnológico disparou a alturas inconcebíveis e o chamado progresso moral deixou de ser, pura e simplesmente, progresso e entrou em regressão.

O progresso tecnológico disparado até ao infinito conseguiu ridicularizar conceitos como a bondade. Fala-se do «bonismo», os cínicos fartam-se de rir. Quando se ridiculariza a bondade, no fundo, a única conclusão é que se está a justificar a delinquência.Como forma de governo. Não me refiro a uma delinquência explícita, activa, mas a uma certa atitude delinquente que se justifica pela indiferença e também pela incapacidade de agir. E acabamos por ser cúmplices de estados delinquentes que permitem que o número de pessoas com fome, segundo a FAO, aumentasse em 2007 em 50 milhões de pessoas, em virtude da liberdade de mercado, a democracia de mercado e todos esses conceitos incompatíveis com a ética de que ninguém fala, a não ser para ridicularizar. E eu pergunto: quem defende a bondade? A bondade deve ser defendida pelos bons, mas como é que isso se faz? Não é raro que os meios de comunicação social alimentem o pior que a sociedade manifesta.

E a escola, que foi o lugar por excelência da aprendizagem, falhou rotundamente. No século XIX dizia-se que abrir uma escola era fechar uma prisão. Mas cada vez são necessárias mais prisões e as escolas funcionam pior. E há a crise da família, que na realidade deixou de ter o papel que tinha. A questão está em saber o que pusemos no lugar dela. Recentemente li que numa cidade dos Estados Unidos tinha sido considerado legal que os alunos entrassem na escola armados. Isto já é pura loucura.Para o que haverá uma saída... Há uns anos, dizia: «Isto vai ter como consequência o regresso de um puritanismo absolutamente exacerbado.» Hoje já não estou tão seguro de que assim seja.

Nos Estados Unidos, sim, a tendência parece essa. Quando a candidata republicana a vice-presidente dos Estados Unidos diz que o criacionismo deve ser ensinado nas escolas ao lado do evolucionismo, já estamos loucos.E casa a filha de 16 anos por estar grávida. As imposições religiosas triunfam. Os valores da solidariedade e responsabilidade não podem impor-se porque foram ridicularizados. Eram valores laicos e a sociedade não é laica. E tão pouco o é que, tendo renunciado a valores de uma religião, está a entrar-se na participação em seitas supostamente religiosas.As religiões não são, todas elas, seitas? Não importa que todas o sejam, o que é grave é que tendo deixado de crer numa religião corras a meter-te numa outra que é o mesmo com outro nome.

O ser humano é um animal doente. E parece que não temos cura.Frente a este despertar mágico-religioso constata-se certa falta de interesse do cidadão pela política. Um dos índices do interesse é a participação eleitoral. Se a participação eleitoral é alta, pressupõe-se que uma parte importante da população está interessada na vida do seu país e toma-se isso como uma vitória da democracia. No entanto, num país com uma enorme reputação de democrático, os Estados Unidos, as eleições são muitas vezes participadas por uns 30 por cento da população. Não entendo... Talvez seja a lógica dos partidos, não da sociedade. AS PAISAGENS VULCÂNICAS DE LANZAROTE, A ILHA CANÁRIA ONDE SARAMAGO VIVE HÁ 15 ANOS, TÊM SIDO O CENÁRIO ELEITO PARA AS REPORTAGENS FOTOGRÁFICAS. O ESCRITOR DESLOCOU-SE À PRAIA PARA ESTA FOTOGRAFIA

Se vivemos numa sociedade de mercado, se o mercado regula a democracia, parece que os governos têm de ser disciplinados segundo os interesses dos grupos económicos, e devem socorrê-los, chegado o caso, como nesta crise, para que o sistema não entre em quebra. Esta crise está a fazer que se desmoronem muitos princípios liberais ou neoliberais: parece que afinal o mercado não se regula sozinho, que pode colapsar, e então, oh, há que chamar o Estado. Está claro: privatizam-se os lucros, as perdas assumimo-las todos. Parece que esta crise acabará com uma volta ao Estado perante um liberalismo que se vendia como a salvação, o fim da História... Embora também possa acontecer que se mude alguma coisa para que tudo continue na mesma.

O capitalismo tem a pele dura.É a ausência da economia moral, essa que não se limita a estudar os fluxos dos preços do pão, mas que procura que toda a gente tenha pão. Os economistas trabalham sobre o que há, e, a partir do que há, fazem as suas previsões, mas que alguém proponha essa ideia da economia moral significa que nem tudo está perdido.Dizem grandes economistas que os bancos centrais são as entidades que permitiram os fenómenos que deram lugar à crise e, apesar disso, os analistas convencionais calam-se. O seu silêncio cúmplice frente aos paraísos fiscais, a sua pretensa independência, eram pretextos para gerir a economia a favor dos poderosos, coisa já evidente. Parece que é necessário revelar a natureza dos bancos centrais, assim como as cumplicidades das páginas económicas dos jornais. As causas são conhecidas, as consequências não o são tanto, mas são sofridas por milhões e milhões de pessoas. Portanto, a questão está sobre a mesa com uma urgência que todos nós sentimos: é preciso pensar, propor, actuar... Muita coisa se resolveu, no passado, com a participação dos cidadãos. Ou se ajudou a resolver.

Agora não. O Partido Comunista Português organizou manifestações enormes no ano passado avisando da crise e praticamente não foram notícia nos meios de comunicação. Essa é outra. Acontece que o Partido Comunista Português, e não é por ser o meu partido, no âmbito parlamentar tem trabalhado muito, faz propostas, apresenta sugestões e ideias, e isso não passa na comunicação social. Há um filtro, tudo quanto vem daquele lado é ignorado. Parece que os jornalistas, de antemão, sabem que se uma notícia não vai agradar ao director, evitam-na. SARAMAGO COSTUMA CORTAR O CABELO, MAS PARA ESTE TRABALHO DO «EXPRESSO» DEIXOU-SE FOTOGRAFAR COMO NUNCA FOI VISTO: NA PELUQUERÍA UNISEX LOLA DE LEÓN, EM ARRECIFE, A CAPITAL DE LANZAROTE Isso seria cobardia e tem desculpa.

É que se riem, «lá está o Jerónimo de Sousa outra vez». Alguns sim. Esses são os herdeiros dos «neocons», mas não da empresa, coisa que parecem não saber.Na aldeia da economia global que hoje é o mundo, Obama, de quem és apoiante, quer ressuscitar o sonho de cidadania em contraponto ao conceito de consumidor, agora vigente. Não sei. Nós temos sempre a tendência de achar que agora vem aí uma terceira via, agora é... Depois, os factos põem as coisas nos seus lugares. Há que esperar o resultado das eleições. Os atentados contra as torres vieram mostrar que os Estados Unidos não são inatacáveis, e isso desequilibrou o estado de espírito da população, dividida entre o medo do que vem de fora e essa espécie de ideia imperial de que, pese a tudo, os Estados Unidos são a maior potência mundial.

Agora, o que pode fazer Obama? É importante que tenha uma maioria democrata no Congresso.E, se tiver essa maioria, achas que Obama vai conseguir mais fundos para investigar a cura de doenças, segurança social e educação, ou vai deixar-se levar pela bandeira, pelos símbolos do poder? Pelo pouco que conheço dele que, no fundo, não é nada, apenas o que posso deduzir das suas declarações, creio que isso não acontecerá.E quando é que vão acabar, vocês, homens, com a ideia de pátria e das bandeiras? Ah, isso parece ser inseparável da natureza humana.Qual foi a origem da bandeira? Não digo da portuguesa, mas da bandeira em geral. A origem… Há diversas ideias, a principal é que a antepassada mais antiga da bandeira nasceu no Egipto dos faraós e era o útero da vaca, pendurado na ponta de um pau e passeado nos cortejo.

Era um símbolo de fertilidade, mas a partir disso, que se podia aceitar, tudo degenerou, até se transformar em qualquer coisa pela qual muita gente acha que se deve dar a vida. A vida pode dar-se por muitas coisas, mas não por um pedaço de pano, ainda que as pessoas digam, «mas isto é a Pátria». Que não é, pois se um regime muda, muda a bandeira. O facto de passar da monarquia à república não teria de mudar a bandeira. Mas muda.Ficam bem nas competições desportivas, e pintadas na cara. E quando, numa reunião internacional, temos atrás aquelas bandeiras coloridas.

É a representação «bandeiril», por assim dizer, dos países que ali estão representados. Há alguma coisa de cómico nisto. NO RESTAURANTE CHEF NIZAR, EM ARRECIFE Há uma única bandeira que não é cómica, a que os guias usam para que os turistas não se percam. Isso tanto pode ser uma bandeira como uma revista ou qualquer coisa que se levante no ar. No fundo é reconhecer a sua capacidade de converter-se em guia.Mas ninguém morre pela bandeira dos turistas, mas morre-se pela da pátria. Aí vem o culto dos antepassados, vêm as histórias edificantes, durante as guerras, em que um soldado avança com a bandeira até chegar exausto e colocá-la.

Recorda aquela já célebre escultura, em Iwo Jima, uns quantos soldados americanos plantando a bandeira, situação que parece que foi preciso repetir mais que uma vez porque a fotografia não saía bem. Enfim, tudo isto é caricato, mas, se aparece uma pessoa a dizer que isto é caricato, logo lhe chamam nomes.Ou processam-no. A razão, onde fica? Nós vivemos num tempo que se caracteriza pela irracionalidade dos comportamentos gerais, e pôr aqui um pouco de senso comum, no sentido de que, acima de tudo, o que há que proteger é a vida, e que a prioridade absoluta é o ser humano, é quase impossível. E mais se esse ser humano enfrenta outro ser humano porque crê num outro deus, ou porque, ao ter uma outra tradição, vê o outro como um inimigo.

A partir do momento em que vemos o próximo como inimigo, a guerra está declarada. A intolerância não é uma tendência, é uma brutal realidade. COM AS SOBRINHAS CHINESAS ADOPTADAS POR MARIA, IRMÃ DE PILAR Até se fala de quantos pobres teremos de eliminar para que cada pessoa mantenha o seu bem-estar. Não eliminar, porque assim perdemos dinheiro. Chegámos à conclusão de que a riqueza se alimenta da pobreza, mas de pobres vivos.Está bem, em 2008 temos mais 50 milhões de pobres, se houver outros mais, temos um problema. Só que estamos a matá-los com o aquecimento global, por exemplo. A questão é que podemos, com os meios actuais, solucionar problemas sem necessidade de recorrer à guerra. É uma nova época de obscurantismo. Há também vozes que se levantam para apelar à razão e ao respeito pelos direitos de cada um, mas também pelos direitos próprios, para que não sejam menosprezados, não aconteça que eu respeite os direitos dos outros e ninguém esteja disposto a respeitar os meus.

Outra grande questão do nosso tempo é a igualdade da mulher e do homem. «Não aconteça que eu respeite os direitos dos outros e ninguém esteja disposto a respeitar os meus»... Ironia à parte, há algo em que podemos estar de acordo: vocês, mulheres, estão em movimento. Claro que se desejaria que esse movimento produzisse resultados imediatos, mas há a inércia da sociedade que resiste a transformações. Agora, o que se progrediu nesse aspecto nos últimos trinta ou quarenta anos não se tinha avançado nunca na história da Humanidade. Que continua, em regiões e países, em crenças e religiões, esse estatuto de subalternidade em que vos colocaram, é certo; mas isso está a mudar, e não pára. O que eu desejaria era ver-vos mais interventivas no plano social, no plano das ideias.As mulheres poderão ir ganhando espaço pouco a pouco, mas lembra-te de que as regras estabelecidas são dos homens e para os homens. Não se vai deixar que as ultrapassem, ou permitir que as mulheres estejam num plano igual, coisa que nunca sucedeu.

Não vão ter outro remédio.E não vão matá-las? Que ideia! Não. Que ideia… NO JARDIM DA SUA CASA EM TÍAS Por que morrem tantas mulheres nos últimos tempos? Isso não tem nada a ver com as lutas sociais ou com…Tem, sim. Não, isso não tem nada que ver. Sempre, e em países desenvolvidos, como sabes, nesse capítulo das relações humanas e das relações do casal, como nos países nórdicos.Há muitas mortes… Essas mortes são…....porque se acabou o papel do pater familiae. Não só, é porque as pessoas não têm a coragem, de um lado e de outro, de dizer «pois, isto falhou, vamos separar-nos». Porque é que um homem mata a mulher com quem está casado ou com quem vive? A razão principal é que a relação falhou. O que é que impede as pessoas de se separarem?A economia. Nem sempre.Basicamente é a economia. E as normas sociais que obrigaram as mulheres a casar-se e a serem submissas. E, como é que se educam os homens?

O ser humano é um animal doente porque não é capaz de reconhecer, ou de inventar, o seu lugar na Natureza e na sociedade. Nós não falávamos na crise da instituição familiar?A família, o grupo humano que se reúne uma vez por ano, e vão todos incomodados, protestando. Bela instituição. Cada um com o seu papel, resignado, interpreta-o de acordo com aquilo que se espera dele.. A norma social vigente manda, mesmo virando as costas à realidade, fazer de conta que se continua a viver nesse «melhor dos mundos» que é a instituição familiar.Mas um intelectual não pode dar-se a esse luxo. A questão é que, e é uma banalidade dizê-lo, as sociedades mudam mais depressa do que nós somos capazes de mudar. Há um desajuste entre a velocidade de mudança da sociedade no seu todo e a capacidade de mudança de cada pessoa. SAUDADO POR FERNANDA MENDES, UMA TELEFONISTA DE FÉRIAS EM LANZAROTE Então vivemos numa época de desajuste total.

Vivemos numa época de esquizofrenia, com um pé no hoje, e até, nalguns casos, vivemos com um pé no amanhã, e o outro pé ficou atrás.Na Idade Média. Exactamente. Nós somos assim, doentes e não fazemos nada. Faz-se tudo para curar as doenças que sobrevêm à doença de origem, mas muito pouco para enfrentar essa doença de origem. Se não parecesse pretensioso com isto... mas enfim, atrevo-me a dizê-lo: acho que na sociedade actual falta-nos filosofia. Filosofia como espaço, lugar, método de reflexão, que pode não ter um objectivo determinado, como a ciência. Falta-nos reflexão, precisamos do trabalho de pensar, e parece-me que, sem ideias, não vamos a parte nenhuma.Vamos mudar de tema. As pessoas vão querer saber da tua doença e como estás.

Mas tu sabes isso e, nalguns aspectos, melhor do que eu, porque, durante semanas, estive entre um lado e outro, enquanto tu estavas lutando como uma leoa pela minha vida. Mas, se tu me fizeres perguntas concretas, tentarei dar-te respostas.Quando estavas no hospital, desde a janela do teu quarto podia ver-se a tua casa, quiçá vias também o mundo. Ao longo da doença, quase às portas da morte, o que era o mundo para ti? Não tinha muita importância. Se alguém se aproximasse de mim para me consolar pelo facto de estar doente, dizendo «Saramago, você está muito doente, mas ganhou o Prémio Nobel, ainda é alguma coisa, não?», eu tentaria dizer que sim, era alguma coisa, mas, na situação em que me encontrava, não significava nada. Não era o Prémio Nobel que se ia apresentar ali com as receitas e os medicamentos necessários para que me salvassem.

Que outras coisas relativizaste? Eu creio, Pilar, que me relativizei a mim mesmo. Aquilo que se estava a passar ali era algo que não podia evitar, cujas consequências finais não podia conhecer, embora fosse de admitir que não resistisse, mas, o que é curioso, é que isso não suscitou em mim nenhuma preocupação. Não me senti preocupado pelo facto de aquela doença poder vir a resultar na minha morte. Pensava nela no quadro da própria doença e, portanto, algo que podia ser inevitável e, contra o inevitável não podia fazer nada. As únicas pessoas que podiam fazer alguma coisa por mim eram, evidentemente, o pessoal do hospital, os médicos, tu mesma. O que acontece é que estava muito seguro, embora nunca o tivesse pensado assim, com esta simplicidade, de que estavam a fazer tudo aquilo que podiam para resolver a gravíssima situação em que me encontrava.

Mas tu própria recordarás que não tive nunca manifestações de angústia, de medo, já não digo o chamado medo da morte. Estava atento ao que os médicos diziam, atentíssimo àquilo que me transmitias das conversas que tinhas com eles. Porém, algumas coisas dessas, as mais importantes, só me falaste delas depois de o problema já estar resolvido, ou a caminho de resolução. Poderia chamar-se a isto uma manifestação de estoicismo.Não, foste muito corajoso. Nem sequer era isso, quer dizer, uma pessoa muito valente, que sabe que está numa situação difícil, de doença, e que se arma de todas as suas forças para lhe resistir. Não, eu nunca me armei de forças nenhumas, para já porque não tinha muitas, mas sobretudo porque…

Não é que me tivesse resignado à hipótese de não escapar, não era resignação. No fundo é como se dissesse, e devo tê-lo pensado mais ou menos assim, a minha situação é esta, vamos a ver como é que se sai disto. E como, e isso pesou muitíssimo, parti da confiança nos médicos praticamente desde os primeiros dias em que eu me tornei consciente, porque houve uns dias em que estava entre cá e lá e o meu grau de percepção da realidade não era grande coisa, mas houve um momento em que senti que já estava com os dois pés deste lado, então entrou em mim uma grande confiança em relação aos médicos que tinha, e essa confiança foi a minha melhor arma.

Sabia que eles estavam lutando para ajudar este velho, e eu podia pensar, e pensei, que eles estariam a fazer tudo ao seu alcance para não deixar que fosse lá para o outro lado, para o outro bairro. E havias tu. E havias tu. Porque, no fundo, tu não és médica, não receitaste nada, que me lembre.E isso como te mudou? Houve alguma mudança. Hoje sou uma pessoa muito mais serena, como se… Não quero dizer mais sábia, porque a doença não podia ter-me ensinado nada, mas é uma espécie de mudança no meu próprio horizonte. Quer dizer: a doença veio dizer-me que morrerei, coisa que julgava saber antes, e que sabia antes, evidentemente, mas uma coisa é sabê-lo, como se traduz naquela frase clássica, «eu nunca penso na morte, só espero que ela não pense em mim».

Isto é uma frase que presume de muita firmeza de ânimo, mas que, no fundo, não é nada, é mais uma daquelas coisas que se dizem. Então penso que ganhei com esta doença. Não vou agora cair na retórica fácil de que me tornei noutro homem. Sou o mesmo homem, mas… creio que a palavra é essa, ganhei serenidade. Mesmo o facto de saber que, um dia destes, a mesma doença ou outra me atacará e que, nessa altura, já não haverá remédio, não me preocupa. E ainda bem, porque uma pessoa não pode viver com preocupações desse tipo. E há uma coisa que, evidentemente, eu creio que me ajudou muito, num certo plano: foi não ter perdido a capacidade de pensar, de imaginar, de manter o espírito desperto. Recorda os diálogos que tinha com os médicos, em que a voz irónica era a minha, sempre, e, às vezes, há que reconhecê-lo e dizê-lo aqui, pesadamente irónica.Sarcástica. Sarcástica, e eles, muito bem-educados, aguentavam, achavam graça.

Mas não era eu quem falava nessa altura, era uma espécie de outro que a doença tinha feito subir à superfície.Que está em «A Viagem do Elefante», de alguma maneira. Eu creio que sim. «As Intermitências da Morte», por exemplo, descreve algo visto do lado de fora. «A Viagem do Elefante», que não descreve nada daquilo que me aconteceu, está do lado de dentro, e isso é que faz a grande diferença entre os dois livros e faz com que eu me sinta, em relação à «Viagem...», dentro do livro. Claro que sou o autor, sou o narrador, sou, de certa maneira, uma personagem da história, mas o empenhamento posto neste livro não é apenas o do autor que está a escrever um livro e que espera que ele seja bem recebido, e faz tudo o que pode para que seja bom, bem escrito, bem armado, bem arquitectado. Não, isto é outra coisa. No fundo, quase diria que este livro se apresenta como uma espécie de testamento, que espero que não o seja, que dentro de alguns meses esteja com outro livro.

Que não seja como este. Que não será como este. Este livro, como tu sabes, foi escrito em duas partes: quando eu entrei no hospital tinha 40 e tal páginas escritas, e o resto, o que faltava, foi escrito depois. E, entre uma coisa e outra, estive numa situação em que não sabia se o ia continuar. E admiti que talvez não viesse a poder terminar o livro. Mas não lhe dei demasiada importância, o que significava que, no fundo, ainda não acreditava que isso acontecesse.Disseste-o, uma manhã, por essas mesmas palavras: «Estou a pensar que talvez nunca acabe este livro.» Pois… Mas no fundo, hoje, a esta distância, e recordando, acho que não acreditava naquilo que dizia.Mas disseste-o, José, e eu vi-te de tal maneira que disse aos médicos que fizessem o possível para te dar mais três meses de vida, para poderes acabar o livro. Fosse assim ou não fosse assim, a verdade é que estamos aqui e o livro está feito.É um livro diferente dos outros livros.

É, é.Feito com mais «carne», mais de dentro, mas também tens mais ironia e mais sarcasmo. É, sem dúvida, o teu livro mais duro. É. Nesse sentido, sim.Também tem uma emoção… Repara que, tendo escrito o livro naquela situação anímica, parece que a tendência seria para o carregar de dados.......depressivos. E, sobretudo, autobiográficos. Não há um só elemento autobiográfico, pelo menos em primeiro grau. Se digo que vejo este livro como uma espécie de testamento, e em princípio não há nada mais pessoal que um testamento, se realmente se aceita essa ideia…....tens de explicá-la. Não é explicável, e não vou perder tempo em dizer porque acho que este livro pode ser uma espécie de testamento. O que tinha era um desejo não muito consciente, a vontade, era a vontade, de terminar um trabalho começado, como se dentro de mim tudo se revoltasse contra a ideia de deixá-lo inacabado.

E, felizmente, o que aconteceu foi o melhor: escapei, e não só para ficar reduzido a um vegetal, recuperei, estou a recuperar forças, energia, capacidade de trabalho, e há esta ideia muito tranquilizadora de que a minha mente não foi tocada, de que aquilo que tenho dentro da cabeça funciona, e que talvez funcione por um tempo mais, que penso aproveitar em todos os planos: no que tem a ver com a criação literária, no plano vital, nas relação com os outros, na relação contigo.Não vou pôr isso. Sim, vais pôr. E tudo isto, que podia ser em algum caso conflituoso, dramático, sei lá... envolto nessa enorme serenidade que habita dentro de mim. Enorme, enorme, enorme... No fundo, é como se eu já soubesse tudo. E não é certo, claro que não. Mas há uma forma de sabedoria que, sem querer, evidentemente, creio ter alcançado e que se mantém tal qual, desde que me tornei consciente disso, até hoje, e que espero que se mantenha, porque me dá uma grande força.

Não é a energia recuperada, não são os 16 quilos que ganhei sobre o que pesava quando saí do hospital, é outra coisa, como se pudesse dizer a mim mesmo que estou no lugar certo, fazendo o que devia. Bom, mas enfim, a palavra-chave é esta: serenidade. Serenidade. E, quando estávamos a falar há pouco da necessidade filosófica… a filosofia, pelo pouco que sei dela, pode conduzir exactamente a isso, a essa serenidade. Ler o Montaigne, por exemplo, é uma lição. Que não é dada em termos de relação mestre-discípulo, é simplesmente um modo de sentir a vida, de viver a vida, e que culmina, quando acontece, nisto que torno a dizer, e já me estou a repetir demasiado, que é a serenidade.Esta entrevista sai depois do 10.º aniversário do Nobel. Julgo que o Prémio Nobel é uma coisa em que se pensa mais enquanto não se tem, não? Em certo modo, sim.

Creio que quando se está escrevendo, trabalhando, o Prémio Nobel aparece como uma possibilidade, muitas vezes remota, difícil de alcançar porque o juízo sobre a obra realizada é feito pelos académicos suecos, que não têm de dar explicações nem justificações.Vamos desfazer alguns equívocos: Academia Sueca, 18 pessoas respeitáveis, não subornáveis, não compradas pelos governos, ou lobies, com suas fontes de informação, que estudam e decidem livremente. Isso é sabido.Sim? Há pouco ouvi um glorioso comentarista português dizer na TV que é necessário muito salão para receber o Nobel, como se os académicos estivessem sujeitos a essa mundaneidade. Isso é um disparate. Eu tenho razões para pensar que o prémio me estava destinado em 1997.

E nota que o Dario Fo, depois de ter sido anunciado que o prémio era para ele, telefonou para nossa casa a dizer, «olha, sou um ladrão, roubei-te o prémio, mas deixa lá que para o ano vais ter…» Porque não o tive nesse ano? Não posso dizer, mas, se há um factor, pode ser este: o ICEP, em 97, e não era um organismo literário, não era do Ministério da Cultura, decidiu levar-me a Estocolmo para dar umas conferências, umas entrevistas, assinar livros, alegando ou insinuando que isso seria útil e que poderia levar à concessão do prémio, dado que me tornava mais visível, etc.Tu não querias ir, eu não te acompanhei, não estava de acordo. Comecei por dizer que não, pareceu-me um disparate, e até usei aquela comparação do pai que quer casar a filha e anda a dizer que ela é uma excelente dona de casa, a ver se a coloca. E, tal como poderia acontecer ao pai, o efeito pode levar as pessoas a uma atitude de rejeição, porque parece que lhe querem impor algo.

Creio que algo de similar aconteceu em Estocolmo em 97. Estava lá e avisei. Recordo que até o nosso embaixador, o Paulo Castilho, abundava nessa mesma ideia, que a minha ida lá podia facilitar, e eu, «não, não. Ponham-me como membro da Academia Sueca, e garanto-lhes que se me atirassem com um candidato à cara, aquilo que faria era vetar».Toda esta história é para dizer… ...que a Academia Sueca, quando se viu como funciona, se conhecem os seus membros e se tem relações de amizade com alguns deles, sabe-se que não são sensíveis nem a lisonjas nem a pressões. E o facto de se dizer que o prémio é concedido por razões políticas ou estratégicas não o torna mais verdadeiro. Podem enganar-se e dá-lo à pessoa errada, ou pode haver alguma vez um sentido de oportunidade, não lhe chamo oportunismo, e dizer «Já era hora de reconhecer....»....que não era dado há muito tempo a uma mulher. Digamos que já era altura. De qualquer forma, o pior que se pode fazer a um autor é um movimento a favor da sua candidatura. Um autor não é um candidato, é, simplesmente, escolhido entre milhares que a Academia Sueca mantém na sua lista.

Diz-se, não sei se é assim, que a academia tem duas listas: uma grande, que pode chegar até aos 200 nomes, e outra mais pequena, de cinco, seis, sete onde parece que estão os que têm mais probabilidades.Essa lista existe. Sim, mas nunca é pública. Há uns anos, Mário Soares, que nessa altura era Presidente da República, foi à Suécia e disse-me: «Bom, vou lá falar em si, e tal…» E quando voltou encontrámo-nos num acto, e ele diz-me: «Bem, não há nada a fazer. Se não há um lóbi, é muito difícil.» Pois o dr. Mário Soares estava enganado.Ele esteve com vários membros da academia que vieram a Portugal, e tinha desejado muito o Nobel para Miguel Torga. O problema é que uma condição fundamental para receber o Nobel é estar traduzido. Eu creio que alguns livros do Torga estão em sueco, embora não esteja a obra poética... Não sei. Efectivamente, o grande trunfo português era o Torga, e não se conseguiu, não sei porquê. A Academia Sueca, soberana nos seus juízos, por razões que desconheço…Jorge Amado também não conseguiu.

Também não o teve o Jorge Amado, nem o João Cabral de Mello Neto, sendo o enorme poeta que foi, Enfim, ficam sempre esquecimentos e injustiças, a Sophia, por exemplo… Em entrevistas disse que se fosse membro da Academia Sueca daria o prémio à Sophia de Mello Breyner. Enfim, calhou-me a mim. E agora quero chegar à outra parte que me importa e creio que importa também à Academia Sueca: o depois do prémio. Isto é igual para todos: o interesse internacional, as edições, os convites para conferências, os doutoramentos honoris causa, tudo isso. E nós tivemos de vivê-lo, não estamos aqui a queixar-nos, mas há uma coisa que presumo: é que no plano... vou usar a palavra, no plano cívico, estive à altura do prémio.Não há dúvida. Creio que, depois do prémio, cumpri as minhas obrigações como cidadão.Incluindo do ponto de vista literário. García Márquez, num artigo magistral que escreveu antes de ele próprio receber o Nobel, falava da maldição do Nobel.

Creio que não há nenhum escritor laureado que tenha escrito, depois de receber o Nobel, tantos livros como tu. Günter Grass escreveu as memórias, escreveu «O Meu Século», Coetzee está publicando e muito bem... e há outros... enfim, os livros, a participação em tanta coisa em que nós estivemos.Estes dez anos foram os dez anos que mudaram a tua vida? Eu acho que não, Pilar. Quer dizer, minha vida tornou-se mais agitada, mais participante. É algo que aconteceu, que teve consequências, mas não mudou nada em mim. Entre o antes e o agora houve uma continuidade natural.Falámos do Nobel, da doença, da situação política, da economia, e agora falta-nos a Fundação. Supõe-se que não a fizeste para enriquecer nem para aumentar a tua glória. Gostaria de saber como é que se enriquece uma pessoa criando uma fundação. A Gulbenkian existe porque, antes dela, existia uma grande fortuna que, felizmente, foi aplicada na sua criação. Agora, uma fundação que foi fundada com o capital do escritor, que cria trabalho, que não depende da administração, que recebe mensalmente uma parte dos direitos de autor para manter uma linha de actuação.

Que é pública. Claro. Os documentos fundadores são públicos, basta ter a simples curiosidade de os consultar para saber quais são os nossos objectivos. A Fundação existe porque tem uma função imediata, que é a da defesa da integridade da obra do autor, não a promoção da obra, que está nas mãos dos seus editores, isso é óbvio, em Portugal a Editorial Caminho, outras editoras por aí fora, a agência literária que me representa faz o que pode nesse capítulo.A Fundação preocupa-se com a defesa dos direitos humanos. Sim, e haverá iniciativas nesse sentido já, assim como com o meio ambiente. E tenta, de alguma forma, ser agitadora do meio literário em Portugal. Sabemos que a morte é uma chatice, claro, e no caso dos escritores é uma dupla chatice.

O escritor morre e a sua obra, geralmente, entra numa espécie de nuvem negra. Não é que não continue a ter leitores, mas já não é a mesma coisa. Ora, nós propusemo-nos organizar a recuperação desses autores, recuperação pelo menos emocional. O primeiro acto foi no Teatro São Carlos, sobre o Jorge de Sena, e foi um êxito, convidámos pessoas competentes para expor as suas ideias sobre a obra e o autor, e agora já se fala da reedição da obra, que estava parada, e talvez de trazer os restos de Sena e a sua biblioteca a Portugal. Em Outubro vamos fazer uma outra sessão sobre o José Rodrigues Miguéis, outro dos autores que entraram nessa nuvem escura, que é um grande ficcionista e um grande ensaísta. Depois disso, provavelmente, será o Vitorino Nemésio, estamos a pensar no Almada Negreiros, que na minha opinião escreveu um dos livros mais importantes da literatura portuguesa, o «Nome de Guerra». Na história da nossa literatura houve duas revoluções: uma, a do Garrett...Estás a falar de projectos da Fundação?

Sim, e de Literatura: uma revolução, a do Garrett, com as «Viagens na Minha Terra», e a poesia, evidentemente. E outra, a do Almada Negreiros, com o «Nome de Guerra». Portanto esta é a sequência. E o quinto vai ser o Raul Brandão, de quem costumo dizer que não é preciso ser-se um génio para escrever um livro genial: o «Húmus», que é um livro único na literatura portuguesa. Este plano mostra que a fundação está a olhar ao redor para dar um espaço a outros autores.Mas não será só literatura, haverá música, exposições, encontros políticos, uns serão na Casa dos Bicos, outros em lugares mais amplos.Está a página da Fundação, com a sua capacidade de intervenção na blogosfera... por exemplo, a campanha a favor do poeta nicaraguense Ernesto Cardenal, vítima de uma série de cumplicidades entre os juízes e o poder político. Como sabemos, Cardenal é um padre, é um bom poeta, um excelente poeta, que diz aquilo que pensa sobre quem seja e está a pagar por isso.

Pediu-se-nos que interviéssemos, fiz uma declaração de apoio a Ernesto Cardenal, que está na página Web, no blogue. Intervenções deste tipo serão determinadas pelas circunstâncias. A actuação no plano dos direitos humanos, no meio ambiente, uma acção cultural que, não tenho dúvidas nenhumas, irá enriquecendo à medida que o tempo passe, é o que desejaria que acontecesse. E que as pessoas se perguntassem: e agora, o que é que vai fazer a Fundação José Saramago? É preciso dizer que a ideia da fundação não nasceu na minha cabeça, nasceu na tua cabeça.Na minha, não. Bom, estávamos em Arrecife com Fernando Gómez Aguilera e José Juan Ramírez, da Fundação César Manrique, e também com José Sucena e Antonieta, que tinham vindo de Lisboa. A conversa girava à volta do aumento de trabalho e consequentes responsabilidades que, nos últimos tempos, vinham caindo sobre a cabeça das pessoas que trabalham connosco.

De toda a parte chegavam-nos solicitações e propostas a que era preciso dar resposta, mesmo quando era impossível dar-lhes satisfação. Há muito tempo que tínhamos deixado de poder defender-nos por trás de umas fronteiras que, apesar de serem imaginárias, alimentavam a ilusão da antiga privacidade. Agora era uma autêntica invasão, como se toda a gente pensasse que o José Saramago devia ter algo para dizer. Multiplicavam-se as chamadas telefónicas, os correios electrónicos, as visitas vindas de toda a parte, com prejuízo do meu próprio trabalho e do meu descanso. Era nisto que falávamos quando alguém, meio a sério, meio a brincar, disse: «O vosso problema foi o José ter-se transformado numa espécie de património da Humanidade.» Rimo-nos, eu menos que eles, e José Juan Ramírez teve a ideia: «Por uma quantidade de razões que não vale a pena enumerar, deveriam criar uma fundação.»Nasceu nesse momento... Quem me conhece sabe que resisto sempre a qualquer ideia ou projecto que me pareçam excessivos e este caso não foi excepção.

Resisti quanto pude, mas sabia-me vencido de antemão.O que queríamos era que a fundação te aliviasse de trabalhos.. E dar resposta às dezenas de solicitações que nos chegam, ao mesmo tempo que pomos em marcha os projectos que vamos concebendo. Insisto: o meu desejo é que as pessoas se habituem a perguntar: o que é que vai fazer agora a Fundação?Digo-te que há muitas pessoas que, de manhã, a primeira coisa que vão ver é o que a fundação tem de novo, e mais agora, com o blogue. Dizem que essa é a forma de manter contacto contigo. Recebem diariamente cartas tuas, cartas do Nobel «bloguero». Gosto de que assim seja.Sabes o que fizeste na blogosfera? Apenas uma pequena ideia. Por mim mesmo, nunca me teria proposto essa aventura, completamente nova nos meus hábitos de trabalho. A sugestão foi tua. O curioso foi ter percebido, logo às primeiras palavras, que estava a escrever em algo surpreendente, na página infinita da Internet, como logo lhe chamei, e que essa escrita era uma maneira de comunicar diferente da que os livros proporcionam, diferente também de escrever artigos e publicá-los na imprensa.

O ser humano é realmente complicado. Tantas vezes me tinham pedido que colaborasse em jornais e revistas, o que evidentemente me seria pago, e agora estou a ocupar parte do meu tempo a escrever textos grátis. Enfim, é bom...E tudo se tornará mais visível quando se ocupar a Casa dos Bicos. Se eu sonhasse alguma vez em ter um espaço público, poderia pensar em muita coisa, mas nunca pensaria na Casa dos Bicos. Temos uma grande responsabilidade com esta sede, com a Câmara, com Lisboa. Ainda bem que somos ousados.Quando vires o mundo desde a Casa do Bicos. Tenho que confessar que gosto de pensar que, numa dessas janelas que dá para o Campo das Cebolas e para o rio, estarei daqui por poucos meses a trabalhar. Vou abrir a janela para ver o Tejo e o Campo das Cebolas. É quase outro Prémio Nobel. Houve um tempo em que o Prémio Nobel me parecia impossível. Pois a Casa dos Bicos também me deveria ter parecido impossível se alguma vez tivesse pensado nela como um destino. No Prémio Nobel, a partir de certa altura, pensei.

Na Casa dos Bicos, não.Agora, José, é curioso que, tanto o Prémio Nobel como a Casa dos Bicos, dez anos entre ambos, repercutam noutras pessoas. Escreve-se para que outros leiam. Recebeste o Prémio Nobel e desde o primeiro dia percorreste Portugal inteiro para partilhar essa alegria, e agora a Casa dos Bicos, para fazer coisas, não à maior... ...maior glória de Saramago, não.Porque podias estar muito bem com os teus livros e se querias ver o Campo das Cebolas, compravas ali um andar e vias o Campo das Cebolas. Mas estás a trabalhar para os outros, e isso deve ficar claro. Enfim, isto tudo acaba por me recordar, quando tinha 18 anos, uma frase que me ficou na memória. Conversando com os amigos, disse algo que não era para a minha idade: «O que tiver de ser meu, às mãos me há-de vir ter.» Parece uma atitude fatalista, mas não é assim: fiz o meu trabalho e continuo a fazê-lo. Mas a sensação que tenho é como se nessa altura me tivesse sido feita uma promessa e a minha vida estivesse aí para mostrar como ia sendo satisfeita.

E a Casa dos Bicos é o último acto. Nunca pensei, não fui eu quem pediu a Casa dos Bicos. Foi-nos dito, e foi um choque.Foi dito porque alguém entendeu que a ideia era viável. Se havia um espaço público que pudesse ser-nos confiado, só o seria em função das nossas propostas de trabalho, do nosso programa, dos nossos objectivos. Foi em função disso, tudo documentado, que nos entregaram a Casa dos Bicos e eu posso garantir que não se irão arrepender.Nestes meses próximos esperam-se duas notícias relacionadas com a tua obra: por um lado, o filme de Fernando Meirelles sobre «Ensaio sobre a Cegueira»… A exibição do filme já está a ser um êxito em vários países. O guião foi bem pensado, os actores e os técnicos são do melhor que poderia desejar.. Embora já tivesse visto o filme em Lisboa, numa sessão privada, estou desejoso de voltar a vê-lo na sua montagem final.

E em Novembro, em São Paulo, será apresentada a exposição «A Consistência dos Sonhos», esse percurso magnífico que a Fundação César Manrique, de Lanzarote, realizou sobre a tua vida e a tua obra e que já vimos no Palácio da Ajuda. A função da exposição ficaria incompleta se o material que a compõe não fosse levado ao Brasil. Dá-me uma enorme satisfação estar sendo um instrumento de novas aproximações dos nossos países. Lá estaremos.Podemos anunciar que no fim do périplo internacional esta exposição ficará, de forma permanente, em Lisboa? Sim, mas não na actual concepção. Na Casa dos Bicos apresentar-se-ão rotativamente diversas percepções da obra, seja através dos livros, da cronologia, de alguma efeméride... Enfim, uma rotação que poderá apreciar-se num dos andares da Casa, que os outros, como é natural, irão ter outras ocupações. Veja o vídeoENTREVISTA DE PILAR DEL RÍOFOTOGRAFIAS DE ANA BAIÃO A história de uma entrevista diferente Há um ano, Saramago disse que os jornalistas não o conheciam.

O «Expresso» desafiou-o a revelar-se. E convidou Pilar del Río para o fazer ÀS VEZES PENSO NO QUE SERIA A MINHA VIDA SEM A PILAR. E NÃO IMAGINO. OU POR OUTRA, IMAGINO: NÃO SERIA NADA BOA (COMENTÁRIO DE JOSÉ SARAMAGO INTERROMPENDO O SILÊNCIO QUANDO ESPERA POR PILAR, QUE FOI À FARMÁCIA, SENTADO NO CARRO COM AS DUAS JORNALISTAS DO EXPRESSO) A ideia do Expresso publicar uma entrevista com José Saramago vinha do ano passado, quando, em Agosto, uma equipa do jornal se deslocou a Lanzarote para fazer um trabalho centrado na mulher do escritor, Pilar del Río, por esta ter assumido a presidência da Fundação José Saramago.O projecto começou a delinear-se num almoço, a partir de uma «provocação» de Saramago: «Vocês (leia-se, os jornalistas) não me conhecem!». «Se calhar porque não se dá a conhecer…», respondeu a autora destas linhas, desafiando: «Porque não dá uma entrevista ao Expresso na qual, finalmente, se revele?».

A conversa ficou combinada para Lisboa por altura do lançamento de A Viagem do Elefante, o novo livro do escritor. Uma jornalista reunia condições exclusivas para realizar uma entrevista diferente, de excepção: Pilar del Río. O que poderia ser um impedimento passou a mais-valia. «Parece-me bem. Aceito o desafio», foi a resposta pronta da antiga colaboradora do Expresso na área da Cultura, hoje com 58 anos, carreira feita na televisão, rádio (onde colabora) e imprensa. A presença de uma equipa do jornal, para fazer a reportagem dos bastidores da entrevista, é igualmente acertada. Devido à agenda do casal, a entrevista acaba por acontecer em Lanzarote.São quase 12h30 do dia 4 de Setembro quando Pilar del Río inicia a entrevista na Biblioteca José Saramago, o pólo da fundação do escritor em Lanzarote que funciona como autêntica sala de visitas do casal. É no meio dos 15 mil livros do fundo bibliotecário do Nobel que a jornalista espanhola o vai questionar e, a espaços, enveredar pelo debate apaixonado de ideias ou pelo tom mais tranquilo de uma conversa.

Ela falará em castelhano, a língua do casal desde que se conheceu em 1986, ele em português.A hora seguinte voa até ser anunciado que Fernando Gomez Aguilera, da Fundação César Manrique, e comissário da exposição «A Consistência dos Sonhos», já chegou, como estava previsto.Pilar vai buscar bebidas e queijo e, no caminho para a cozinha, queixa-se das respostas longas do entrevistado. A hora do almoço há muito que chegou. Retomamos pelas 17h30. O casal aparece com Camões, o cão de estimação, e a cadelita amiga Boli. Os temas sucedem-se por cerca de duas horas e meia, até que Pilar anuncia: «A entrevista está feita». À beira dos 86 anos e ainda convalescente, Saramago mostrou-se em grande forma e em apenas duas sessões concretizava-se um trabalho previsto para vários dias. Para tal contribuiu o conhecimento e a cumplicidade entre ambos? Certamente, embora, na maior parte do tempo, ambos tenham mantido sem esforço os papéis de entrevistadora e entrevistado. Só em dois temas caros a Pilar o seu envolvimento veio ao de cima: os alegados lóbis que terão contribuído para o Nobel e alguma polémica pela cedência da Casa dos Bicos à Fundação José Saramago.E o casal, enquanto tal, «apareceu» na entrevista? Não podia ser evitado.

Eram Pilar e José que falavam da grave doença que o levou a ter avistamentos da morte. Ele perdeu a voz por duas vezes; ela virou as costas para esconder um rosto emocionado. Deixou-o falar até, num gesto subtil, lhe pedir para terminar. Ele tocou a mão dela e assim ficaram numa imagem que explica a dedicatória do novo livro, que o escritor nos revelou: «A Pilar, que não deixou que eu morresse».Noutro dia, faz-se o balanço de um trabalho que constituiu novidade para ambos - ela já o havia entrevistado para duas publicações em língua castelhana (em 2001 e 2007), mas esta foi a primeira entrevista para um jornal português e «ao vivo» (as anteriores foram escritas de computador para computador).Pilar está satisfeita. «Temos um documento. Nem foi uma entrevista mais fácil, nem mais difícil, foi diferente. A minha expectativa era até onde Saramago ia deixar-se ver, quantas portas ia abrir e o que ia contar».O entrevistado não poupa elogios ao profissionalismo da mulher. «Pilar leva o jornalismo na massa do sangue. Se eu não tivesse vindo, de algum modo, cortar-lhe a carreira, ela seria uma das grandes figuras do jornalismo espanhol», diz, emocionando-a.

«Foi um condensar de tantas coisas que temos dito um ao outro. Abri-me mais do que se o entrevistador fosse outro e fui tão longe quanto possível na explicação das minhas razões».Recusam a ideia «mediática da mulher que entrevista o marido» e acreditam ter conseguido fazer a entrevista «sem demasiada pieguice». Mais: Pilar garante que ele não conhecia os temas, muito menos o guião. Mostrar a entrevista antes de a publicar? «Porque não? Se tal contribuir para aclarar ideias, melhorar o português». Porque, acima de tudo, querem que seja «a melhor entrevista

publicação de
JBS

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