quinta-feira, 30 de outubro de 2008

IMPRENSA/ VISÃO


CRÓNICA SEI LÁ SOBRE QUÊ...
de António Lobo Antunes


Fico sempre espantado com a vida das pessoas, os seus desejos, as suas ambições, os seus medos, as suas minúsculas querelas. Olha, as flores da jarra estão a murchar na água cinzenta, as folhas soltam-se, uma a uma, dos caules, tudo isto em silêncio, sem pressa, a tombarem na toalha, enroladas, secas. Dizia eu que fico sempre espantado com a vida das pessoas: até o que lhes dá prazer me surpreende. Meu Deus, o que se agitam, tanta pressa sempre. E olhos ocos, aflitos.

Tenho agora mais flores na sala do que num velório. Vêm daqui e dali com cartõezinhos simpáticos, a lembrança dos vivos. Se calhar morri sem dar por isso e continuo a existir na memória dos outros. Tocam à campainha e é um sujeito com flores. Estendem-me um papel
– Assine aqui

garatujo a hora, garatujo o nome, carregam no botão do elevador, somem-se e eu com aquilo nos braços. Vou deixando os ramos não importa onde: não há esquife aqui, não os posso encostar ao defunto. A voz da minha mãe ao telefone, a gritar como sempre. Coitada, tem passado algumas aflições com os filhos. Olho para ela e vem-me à ideia que a velhice depena as pessoas, tira-lhes bocados, às vezes dá--me a impressão que à minha mãe falta um pedaço da crista quando a vejo sentar-se à mesa ou que o tempo, como uma borracha, lhe apagou parte das feições, quebrou um bocadinho a voz, poliu os dedos que se tornaram sedosos, frágeis. Ali está ela a olhar para dentro, por vezes numa espécie de sorriso, quer dizer não é a boca que sorri, o sorriso à frente da boca, a flutuar sozinho. Eu na outra ponta da mesa, no lugar do meu pai a pensar

– Como é que o garfo vai atravessar o sorriso?
com medo que o garfo o leve para o prato e não leva, o sorriso continua intacto, perfeito, e é por baixo dele que a minha mãe mastiga. Chama-se Margarida. Em criança julgava que as pessoas, à medida que o tempo ia correndo, mudavam de nome. Por exemplo Rita assenta bem numa rapariga, não assenta tão bem numa senhora de idade e então trocavam o Rita por Clotilde ou Leopoldina, por exemplo Joana não calha numa ruiva e então muda-se para Beatriz e ao começar a fazer madeixas recupera o Rita, por exemplo Hermes desafina num bébé de maneira que fica à espera que o bébé tenha cinquenta anos e entretanto dizemos Pedro, mas a minha mãe foi Margarida sempre e não a concebo Fortunata nem Elisa nem Cátia embora para mim fosse

– Mãe
e estava encerrada a questão. E lá vai o garfo sem amolgar o sorriso. A única pessoa que não usava o
– Mãe
era o meu pai e as empregadas não
– Mãe
nem
– Margarida
as empregadas
– Senhora

o que me parecia um pleonasmo, como pôr ketchup em cima das rodelas de tomate. Os meus colegas de escola davam igualmente
– Mãe
às mães deles, o que eu achava estranho até perceber que
– Mãe
era o nome mais vulgar em Portugal. Curto, rápido, preciso e fácil de gritar durante o horrível suplício do corte das unhas, sobretudo o mindinho que uma tesoura feroz atacava magoando-me sempre, ou então era o medo que me magoasse que me magoava. Horas tremendas
– Que horror essas unhas
ordens horríveis
– Chega-te mais para a luz
conselhos tenebrosos
– Não te mexas agora
e isso, o arrancar dos pontos pretos com o aviso
– Está quase

seguido da exibição de uma coisa microscópica na ponta do indicador, sem mencionar a sopa
(– Quem não tem fome de sopa não tem fome de doce)
e a lavagem dos dentes, constituíram os suplícios cardinais da minha infância. Entretanto acho que me desviei do princípio desta crónica, ou seja de ficar sempre espantado com a vida das pessoas, os seus desejos, as suas ambições, os seus medos, as suas minúsculas querelas. E as folhas das jarras a desprenderem-se dos caules. Se me deitasse no chão da sala acabavam por cobrir-me por inteiro e eu debaixo delas dando pela empregada a abrir a porta, a olhar para aquilo e a varrer-nos na direcção da pá: lá vou eu para o contentor dentro de um saco plástico, cheio de perfumes moribundos como os das tias-avós, rodeadas de essências vagas e tristes.

Claro que se eu chamar a dona Olívia não liga: não acredita que as plantas falem e para o caso de se atreverem a falar nada melhor do que empurrá-las com força para o fundo. O que os outros se agitam, tanta pressa sempre, e eu quieto. Sou um narciso, uma begónia, uma túlipa, ou antes restos de narcisos, de begónias, de túlipas, tão doces, tão pálidas. Mas não terei olhos ocos nem aflitos, apenas um caule tranquilo e por cima sacos plásticos dos vizinhos. Hoje voltei para casa, a seguir ao jantar, atrás de um bêbado. Ia de um lado ao outro do passeio, majestoso, lento. A certa altura parou a fazer chichi contra uma parede, um chichi interminável, uma abundância de fonte. Lembrei-me do bêbado de Pedro Páramo

– Ai vida não me mereces
e de caminho dei-lhe uma palmada no ombro que por pouco não o fez desmoronar-se, caindo tijolo a tijolo na rua mal iluminada, com grandes manchas de sombra que afogavam os automóveis estacionados, os prédios. Jantei sozinho num restaurantezito onde uma rapariga de cabelo pintado de loiro jantava sozinha. Ao levantar-me tinha saído. Para onde? O que fará agora? Sentada diante da televisão, com uma revista esquecida nos joelhos? A ler? À espera de um telefonema que não chega? Na janela em frente dois homens penduram um quadro na parede, afastam-se a observar o efeito, endireitam-se. Vinte e três horas e vinte e três minutos, vinte e três horas e vinte e quatro minutos. Hoje de manhã a televisão holandesa a entrevistar-me: deve ser uma estucha para os jornalistas porque não falo da minha vida e muito menos dos meus livros, eles que se defendam sozinhos. A certa altura silêncio e a produtora a perguntar-me o que pensava eu. Não respondi.

Para quê? É que se respondesse dizia-lhe que não pensava em nada, pensava no vácuo.

publicação de
JBS

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

ESTE PAÍS, NÃO

OPINIÃO de
João Brito Sousa


IMPRENSA/D N

notícia que se segue vem no DN de hoje. EI-la;

“A Sociedade Lusa de Negócios (SLN), a holding que detém o Banco Português de Negócios (BPN), e que é presidida pelo antigo ministro das Finanças Miguel Cadilhe, chamou ontem o Ministério Público (MP) à sede daquele banco e denunciou os vários crimes financeiros que alegadamente estão a ser praticados no seio do grupo. Ao que o DN apurou, pelo menos três quadros superiores foram desmascarados como estando por trás de alegadas situações criminosas.”

MEU COMENTÁRIO.

Parece que se rouba em Portugal escancaradamente. É triste viver num país assim, onde um Presidente de um Banco, que já foi Ministro, não controla o que se passa no seio da sua instituição e vê-se brigado a chamar o representante do MP para denunciar os crimes financeiros que alegadamente ali se praticam.

É um País sem reserva moral que permite que os menos necessitados roubem por todos os lados

Que pobreza de estilo

JBS

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

AO DANIEL CORREIA


2008.10.27

MEU CARO AMIGO,

Encontrei-me este ano com ele no verão e levou-me a sua casa à TORRE NATAL. Gostei muito de o ver e o homem está na mesma ou mais novo ainda. Tocou uma moda para a gente que ouvi com agrado. Ainda dá uns toques no acordeão. Pedi-lhe para tocar ma moda da Maria Clara, a Figueira, Figueira da Foz e lá veio a música.

Esteve um ano na Alemanha e 15 ou 16 na França enquanto eu andei por aí na luta. Mas o Daniel Correia foi se mpre umm grande amigo. E recordo-o aqui com saudade.

Aí vai um abraço para a malta do nosso tempo do

JOÃO BRITO SOUSA

domingo, 26 de outubro de 2008

CRÓNICA DE WASHINGTON


ABRAÇO DA ORDEM...
por Diogo Costa Sousa


NO EXIST SUCH A THING AS A FREE LUN


Desconhecia a existencia das vice campeans.....julgava eu que isso do hoquei ,ragbis e outros desportos que eu considerava elitista so' existiam nos grandes meios....Bolqueime provou-me errado e eu regosijo-me por tal......ja' tinha dado aleta de barreiras,o nosso presidente.....mas isso de correr para no's montanheiros nao era desporto....era desenrascanso.Parabens a's meninas.

Sobre o Ze Rodrigues dos Santos,ja li os tres livros dele mais conhecidos....nao sao obras literarias famosas mas, sao educativas,ele pesquiza bem o que ja existe escrito sobre um tema e, acrescenta-lhe sexo o que faz com que o povo fique grudado ao livro,excitado mesmo e,aqui e' importante,aqirindo conhecimentos que de outra maneira nao se preocuparia buscando....cultiva-se o que sempre foi bom...por exemplo ,o livro Codex ....qualquer coisa,sobre Colombo,ele baseia-se num livro que eu por sinal havia lido e reconheci as passagens que e' "Cristovao Colombo,agente secreto de D. Joao segundo "do Dr Mascarenhas Barreto......ora, ele agarra no livro de pesquisa de Mascarenhas Barreto,mete um crime e sexo,mistura aquilo tudo e....sai um bom livro,atraente,mais do que o do verdadeiro pesqizador....que nao e' mais que isso e JRS E' romancista....para ser honesto comigo mesmo devo confessar que sempre esperei que MB o procecasse judicialmente por "COPY RIGHTS".....ate aqui nao o fez...tambem creio que nao o fara no futuro.

Quanto ao anunciado ontem,vou esperar para ver....refere-se ao estado novo e, segundo disse ou eu entendi e' a biografia da familia.Quanto ao Marcelino queixar-se que a agua e cara......eu diria que ja nao existe nada barato....ela tem despesa de armazenamento e distribuicao....escravatura ja' nao existe e ele e no's todos temos que compensar os outros pelos servicos prestados e bens fornecidos.....eu chego a fazer parodia dos impostos dizendo:-este e' para isto....este e' para aquilo....e o resto e' para pagar o ar que respiro...... .um abraco velho amigoBom fim de domingo

MEU COMENTÁRIO

Excelente crónica a tua, eu e o MM, estamos convencidos que, burilando aqui e ali, darias um bom mestre da escrita. A cho que tens um raciocínio perfeito e tens... coragem. Gostei de ler o teu texto sobre o Zé RODRIGUES DOSSANTOS.
abraço do
JBS

sábado, 25 de outubro de 2008

IMPRENSA/ EXPRESSO


MANOBRAS de OUTONO
from Washington, DIOGO TARRETA

Mais inútil ainda, e esse altamente lesivo do interesse público, é o contrato com a Liscont para o terminal de contentores de Alcântara - a última asneira do ministro Mário Lino

1 Há várias lições possíveis a retirar da novela Manuela Ferreira Leite-Santana Lopes, a propósito da fatal candidatura do ‘menino guerreiro’ à Câmara de Lisboa. Só que em nenhuma delas Manuela Ferreira Leite sai bem na fotografia e eu lamento, porque, em acordo ou em desacordo, sempre achei que ela fazia parte do número restrito dos que estão na política para servir e não para se servir dela

Mas acontece, primeiro que tudo, que eu não tenho dúvida de que ela tem por Santana Lopes a mesma consideração política que eu tenho - isto é, nenhuma. As razões pelas quais Ferreira Leite aceitou a presidência do PSD, como antes aceitara funções governativas, são exactamente as opostas que levam Santana Lopes a habitar eternamente na política. Por isso, ambos se confrontaram há poucos meses e toda a gente percebeu que o confronto era, não só entre duas formas radicalmente opostas de fazer política, mas, sobretudo, entre duas atitudes éticas radicalmente opostas de estar na política. Além disso, que já não é pouco, Ferreira Leite não ignora o desastre que Santana protagonizou em Lisboa, sabe o estado de ruína em que ele deixou as finanças de Lisboa - como já antes deixara as da Figueira da Foz e as do próprio país.

Ela sabe que o ‘menino guerreiro’ serve, às vezes, para ganhar eleições ou animar debates, mas não serve para ser levado a sério e governar nem que seja uma paróquia de Trás-os-Montes. Mas aceitou a candidatura de Santana, primeiro porque isso lhe resolve o problema de se ver livre dele, bem à maneira sibilina de Durão Barroso: se ganhar Lisboa, a vitória poderá também ser reivindicada por ela; se perder, é de esperar que ele entre em pousio mais uns tempos, embora necessariamente curtos, como todos sabemos. Segundo, porque isso lhe permite dizer que não exclui nenhum adversário interno dos ‘combates’ e das ‘batalhas’ - para usar essa linguagem tão cara aos ‘meninos guerreiros’ do PSD, tipo Valentim, Jardim, Santana e afins. Se as razões são más, a fórmula escolhida é ainda pior. Manuela concertou tudo com Santana, mas, na hora de dar a cara por uma decisão injustificável, fez avançar a Distrital de Lisboa, atrás da qual se escuda para poder dizer que foi uma escolha ‘democrática’ das ‘bases’ do partido.
Vira o disco e toca o mesmo: desta forma da fazer política estamos fartos.

2 Tirando as pertinentes questões relativas às programadas obras públicas, não consegui perceber qual era a posição do PSD relativamente à crise financeira e económica nem as razões pelas quais votarão contra o Orçamento do Estado. Queriam mais despesa pública, menos despesa? Mais impostos, menos impostos? Mais défice, menos défice? Ou bastaria que o Governo tivesse previsto 0,1% de taxa de crescimento em vez de 0,6%, e já votariam a favor todos contentes?

Também não percebi bem quem falava em nome do partido e qual era o discurso oficial. O líder parlamentar dizia uma coisa, o ‘ministro-sombra’ da Economia dizia outra; as eminências-pardas em matéria económica e os empresários próximos deixaram entender uma coisa e a presidente veio concluir outra. Até apareceu, lá pelo meio e fugazmente, Pedro Passos Coelho - a reserva ‘juvenil e regeneradora’ do partido - que veio lançar umas ‘bocas’ que confesso não fixei bem, tão atento que estava a ver se ele se atrevia a voltar a defender agora a privatização da Caixa Geral de Depósitos e tudo o mais que o seu pensamento ultraliberal gostaria de privatizar, há uns meses (em vão: não se atreveu...). Percebi que o PP vota contra o Orçamento porque quer defender ‘as famílias’ e os ‘pensionistas’ e ainda não sabe, ou prefere não saber, que estamos falidos e connosco o resto do planeta. Percebi que o PCP vota contra, não só porque vota sempre contra, mas também porque acha que se perde aqui uma grande oportunidade de regressar ao gonçalvismo e ao 11 de Março e nacionalizar a banca.

E percebi que o BE vota contra porque quer reactivar o «slogan» de ‘os ricos que paguem a crise’ e aproveitar para subir impostos. Mas não percebi, sinceramente não percebi, porque é que o PSD vota contra. ˜

3 Escapa-me a competência para saber se o Orçamento é bom ou mau. Sei que a crise é global e profunda, atingindo as raízes do sistema. E também sei que, mesmo antes dela, a situação do país era conhecida de todos: um Estado que gastava, ano após ano, mais do que tinha, endividando-se para o futuro; uma competitividade na cauda da Europa; uma produtividade própria de mandriões; uma Educação sistematicamente reformada e falhada; uma Justiça de anedota; uns Sindicatos da época da Revolução Industrial; e um pequeno patronato - coração da economia - cheio de ‘chicos espertos’, especialistas em fugir ao Fisco e malbaratar ajudas europeias. Não sei, mas talvez alguém me consiga explicar, como é que, com este panorama se poderia fazer um ‘bom orçamento’: sem inflação e com aumentos salariais decentes, sem défice e com aumento de despesa pública para relançar o crescimento, sem aumento de impostos e com aumento das pensões e dos subsídios de desemprego.

Palavra de honra que tenho admiração pelo ministro Teixeira dos Santos: vários outros teriam fugido no lugar dele. Em situações de muito menor aperto, já os vi ensaiarem a fuga em frente ou para fora, fazerem batota nas contas públicas, prometerem o que sabiam não poder dar, fingirem uma coisa e fazerem outra. Ele, não: o que prometeu, fez. Prometeu reduzir o défice das contas públicas e fê-lo - e a isso devemos não estar agora em pânico, mas apenas em perigo, como todos os outros. Não se precipitou com a crise financeira, nem correu a fazer de Gordon Brown, como defendeu Manuel Alegre, porque, de facto, ainda não foi preciso acorrer a banco algum - e a lei que fez para prevenir tal eventualidade é justa, adequada e defende o interesse público.

Enquanto toda a oposição esperneava na ânsia de dizer alguma coisa e conseguir culpá-lo pelo estoiro do «subprime» nos Estados Unidos, ele manteve a calma e mostrou ser o único que estava a pensar no futuro e tinha um plano para enfrentar a crise. E, no meio do reboliço, teve ainda de apresentar o Orçamento do Estado mais difícil de sempre, onde todas as previsões são falíveis, desde o preço do petróleo à dimensão da crise nos parceiros que mais de perto nos tocam. Mas basta escutar as críticas da oposição, todas contraditórias e todas atiradas para a frente sem nenhum risco nem preocupação de coerência, para se perceber que, se há um homem ao leme, é Teixeira dos Santos. E isso é justo que se diga.

4 No pólo oposto, mais parecendo um menino divertido com os seus brinquedos sem perceber que a casa está a arder, temos Mário Lino, o infatigável ministro das Obras inúteis. Encontrei-o há dias num restaurante a almoçar, e ele, simpático como sempre, confessou-me que se tem “fartado de rir” com as “asneiras” que eu digo, em particular aquela de que basta olhar para o céu, no aeroporto da Portela, para perceber que ele não está saturado, ao contrario do que juram. De facto, eu acho que a história da saturação do Aeroporto da Portela é a mentira da década, destinada a vender-nos um aeroporto novo, inútil. Assim como acho inútil e ruinoso o TGV para Madrid ou para Vigo ou as novas auto-estradas em concurso. Mais inútil ainda, e esse altamente lesivo do interesse público, é o contrato com a Liscont para o terminal de contentores de Alcântara - a última asneira do ministro Mário Lino e objecto do último texto aqui. Asneira por asneira, a diferença é que as minhas, a serem reais, são inofensivas, e as dele não. De Janeiro a Julho, eu trabalho exclusivamente para proporcionar ao Estado o dinheiro de que ele necessita para fazer obras públicas. E achar que parte significativa delas são inúteis e se destinam apenas a alimentar uma clientela empresarial que não vive sem o Estado, não me dá vontade nenhuma de rir. Ainda se isto fosse a feijões...não concordo com ele em relação a PEDRO SANTANA LOPES

Publicação de
João brito Sousa

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

OUTROS TEMPOS


À D. JÚLIA QUE SÓ OUVI FALAR.

Gostava de experimentar D. Júlia, e lá foram e parece que a coisa deu certo. Conversa de estudantes os senhores calculam. A central estudantil nesse tempo de juventude era no Sacramento à Lapa, onde curtimos a nossa juventude o melhor que sabíamos e podíamos.

Vínhamos de diversas camadas sociais, éramos estudantes e trabalhadores estudantes. Às vezes chateávamo-nos e foi nessa hospedaria que vi o Arnaldo Silva ir abaixo com o sete de trunfos nas unhas.. O jogo abria e o Vieguitas dava de imediato um murro na mesa e aquilo calava-se tudo. O trabalho na zona era bem remunerado.

Às vezes aparecia o Pitrónio e armava-se em preso político, entregava-nos uns paus de vassoura que faziam de espingarda, a hospedagem transformava-se numa cela, o Diogo fazia de barbeiro, o João Bruto era o chefe dos guardas, isto tudo antes dos sete escudos e cinquenta e antes do papagaio

Já chega dizia o Pitrónio.

Era nessa altura que chegava o Feliciano que trazia a notícia que o Agostinho tinha ganho a etapa da volta a França. À noite todos à Estrela, O Jack ganhou a etapa. Afinal era mentira mas podia ser perfeitamente verdade. O Jack batia-se com o Poulidor, porque o Mercks era doutra galáxia.

Cá dê ele?

Foi a da Júlia disse o Del Sol. O Viegas está ao telefone para ti. Não atendo, diz isso a ele. VOILÁ. As tantas ele chegava, estou derreado, dizia. Tinha havido coisa em grande. Como é que fizeste? Disse apenas que gostava de experimentar. E foste? Eu vou sempre, disse ele.

Uma vez dissemos, vamos ao Algarve de avião. Eu vou, disse ele, ao mesmo tempo que olhava para a extremidade dos braços agora levantados. Viu que lhe faltava o relógio. É amanhã, sim... então não posso marquei com o Amaral ir ao Gordo, vamos comer umas sandes...

Às vezes o Heldinha vinha connosco e queria conduzir a carrinha. Almoçávamos no Canal Caveira. Noutros tempos passávamos pelo Carregueiro. O caminho de ferro ficava ao lado - uma sandes de cabrito dizia o Heldinha...

Meu caro amigo, afilhado e compadre, amizade continua intacta.

Talvez O OBAMA.

JBS

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

INFELIZMENTE.. FOI ASSIM


AS RELAÇÕES HUMANAS
por João Brito Sousa

É um assunto difícil, quer na prática quer para escrever sobre isto. No dia a dia a gente faz o melhor que pode, mas às vezes espalhamo-nos. Aqui há dias, um afilhado e padrinho meu, a falar comigo from Washington, dizia-me, então, como é que estás, nem tens tempo de me mandares um mail, já sei que não estás autorizado e coisas e tal.

Bem eu estava a conversar com o meu padrinho/afilhado através do TM com o som no altifalante, pelo que a minha mulher ouviu a conversa e disse-me, João, não gosto disso.

A minha relação com o meu padrinho/afilhado é muito antiga, logo, muito íntima, temos um grande à vontade para falar destes assuntos e de outros, mas esta conversa banal e até certo ponto habitual saiu.

Interrogando-me sobre o conteúdo da conversa sobre quem é que falhou aqui, não sei responder.

Assim como aquela cena daquele que se diz meu colega e sob a cobertura do anonimato me manda esta: Eh pá, és um egocêntrico, falas demasiado de ti e em teu proveito e não queres saber nada do que é que os outros pensam disso. Di z isso mas não se identifica e diz-me que à luz do regime democrático em que vivemos não quer ofender ninguém e diz que tem o direito a expressar as suas ideias livremente....

Bem esta forma de comunicar também não me agrada, porque só ele é que fala. Estará isto certo? interrogo-me

Mas a mais bonita, foi aquela protagonizada por mim e outro, um colega de trabalho de antigamente, onde rompemos com uma amizade de mais de quarenta anos, porque certamente falhou a comunicação. Era a último coisa que eu podia imaginar, era romper com este homem, que eu sempre considerei um grande amigo, dos grandes, mesmo e estou a falar muito a seio..

Foi assim, mais ou menos. Ele escreveu no blogue da Escola como meu convidado para tal efeito, um texto que eu não gostei do que disse de mim, sobretudo para o local onde escreveu, e mandei-lhe um mail grosseiro que eu pensava, que ele poderia eventualmente não gostar mas que, para salvar a amizade, aguentava os cavais.

Não fez isso e disparou. Eu retorqui. Ora arranjou-se aqui uma “tourada do catano”. E, aparentemente não havia razão para isso. A questão principal era uma questão de ética, ou seja, eu achava que as acusações do meu agora quase inimigo, deveriam ser tratadas não a nível do blogue, mas uma vez que era uma questão particular, deveria ser tratadas a nível de mail..

A fase final ainda foi tratada alguma coisa por mail mas o grosso da chatice foi tratado dentro do blogue indevidamente.

No fim de contas não tivemos habilidade para resolver as coisas.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

VOU COMEÇAR A TRABALHAR AQUI...


2008.10.22

EGOCENTRISTA EU?
Por João Brito Sousa

Li no dicionário que o egocêntrico é aquele que exibe atitudes ou comportamentos voltados para si mesmo de modo relativamente insensível às preocupações dos outros.

Gostava de saber quem é o cavalheiro anónimo que colocou como comentário no blogue http://oscostoletas.blogspot.com/, o seguinte:

“O comentarista anónimo(quadras António Aleixo)- é um COSTELETA de longa data (não é pára-quedista) que não aprecia a sua maneira - EGOCÊNTRICA de dar nas vistas. Como estamos num regime democrático e sem querer ofender ninguém - utilizei as quadras populares de António Aleixo ( um ilustre cidadão da nossa LITERATURA) para caricaturar a situação”...

Não vejo razão para isso

Se procurar bem lá no fundo de mim, encontrarei talvez um bocado de arrogância, quando coloquei no blogue da escola o meu curricullum e não tenho problema nenhum em assumir isso, mas o curricullum foi lá colocado com o objectivo de informar quem eu era, nada mais..

Eu acho que uma atitude isolada não dá direito a essa classificação daí eu me ter insurgido porque eu nunca fui nada disso.

Que o colega não aprecie a minha maneira “EGOCÊNTRICA” de estar na vida, tudo bem, terá esse direito. Agora dar-me porrada porque vivemos sob o tecto do regime democrático, dizer que não quer ofender ninguém e malhar-me forte e feio, dizer que tem direito às suas ideias livres e lá vai disto .... escondendo-se sob a forma do anonimato, isso é que não está certo.

Apareça por aqui e diga-me quem é. Teria muito gosto nisso.

João Brito Sousa

terça-feira, 14 de outubro de 2008

IMPRENSA/ EXPRESSO

ANÁLISE POLÍTICA
por Fernando Madrinha


É a primeira vez que um Governo está autorizado a fazer eleitoralismo sem ser condenado por isso Alterar tamanho Desde que chegou à liderança do PSD, Manuela Ferreira Leite optou por falar pouco, de modo a fugir à cacofonia política e dar mais força àquilo que diz quando, por fim, decide intervir. Era uma boa ideia. Os eleitores estão cansados de palavras vazias e de promessas furadas. Mas a líder do PSD levou tão a peito essa ideia que aquilo que se apresentava como uma opção táctica inteligente, desde que usada na medida certa, se tornou numa espécie de vício. Ou numa nova obsessão, para usarmos o termo a que, enquanto ministra das Finanças, Manuela recorreu um dia para definir a sua preocupação com o défice: a obsessão da mudez.

Esta ideia fixa de impor os seus próprios tempos e os seus próprios temas, evitando o comentário pontual sobre os assuntos que fazem a actualidade, leva a que a líder do PSD fique sempre à margem da discussão dos temas que realmente preocupam os eleitores. Por mais importante e controverso que seja o reconhecimento do Kosovo, por exemplo, ninguém compreende uma audiência “urgente” com o Presidente da República - uma audiência que o PSD nem se deu ao trabalho de explicar - quando a crise financeira ameaça virar o mundo do avesso e pouco se sabe sobre o que pensa disso a líder da oposição.Luís Filipe Menezes tinha a obsessão oposta - a de estar sempre ‘no ar’ - e Manuela Ferreira Leite quis marcar a diferença. Muito bem. Mas nos tempos de perturbação e ansiedade em que vivemos, não pode esquivar-se à opinião sobre as mudanças extraordinárias a que o mundo assiste diariamente.

E de uma pessoa que, além de ser candidata a primeira-ministra, tem formação e experiência na área das Finanças, espera-se muito mais do que dois ou três comentários avulsos e desconexos a zurzir o Governo.A obsessão da agenda própria dá coisas ridículas como esta: a recusa em comentar o discurso do Presidente da República na cerimónia oficial do 5 de Outubro, que Manuela ouviu pessoalmente do princípio ao fim. Foi Paulo Rangel, o líder parlamentar do PSD, quem veio comentar, depois de todos os outros partidos o terem feito. Rangel é um político inteligente e arguto, sério na argumentação e com uma formação sólida - talvez a mais consistente e talentosa revelação da política portuguesa nos últimos anos.

Lá justificou o silêncio da líder alegando que, para fundamentar uma opinião, era preciso ler com atenção o que disse o Presidente - algo que só diminuiu Manuela na comparação com os outros dirigentes, começando pelo primeiro-ministro.A líder do PSD quis inaugurar um novo estilo e está a consegui-lo: é o estilo da líder ausente. Mas este estilo tem um pequeno problema. Nenhum eleitor se mobiliza para o voto num partido da oposição se a sua líder fugir a pronunciar-se e a apresentar propostas que o diferenciem do partido governamental. Disse Manuela um dia que o calado é o melhor porque, assim, os jornais só falam “das asneiras que o Governo faz”. Engana-se. Desde logo, o Governo não faz só asneiras. Depois, o país precisa de contrapontos e de alternativas ao poder socialista - e espera esse contributo do PSD. Além disso, para tornar as coisas ainda mais complicadas, vivemos uma situação original e com o seu quê de irónico.

Depois de três anos atribulados por força do défice, depois dos insultos na rua, depois de lapidarmente frustradas todas as suas esperanças de um fim de mandato simpático para os eleitores, a mesma crise que sufoca o país dá um novo fôlego ao Governo que pode revelar-se fatal para o PSD: esta deve ser a primeira vez que, em ano de eleições, um Executivo em funções está autorizado a tomar todas as medidas populares que entenda sem que seja condenado por eleitoralismo. Os silêncios de Manuela não têm, pois, explicação. São apenas um sintoma e um disfarce da sua fragilidade como líder e da sua enorme solidão à frente do PSD.CIP vira à esquerda Opresidente da CIP converteu-se ao socialismo? É o que parece. De outro modo, seria impossível tê-lo ouvido afirmar que não o chocaria o facto de o Estado vir a orientar a economia “por uns anos”.

“Desde que não seja para sempre”, acrescentou. Compreende-se. Desde que seja apenas enquanto for necessário o dinheiro do Estado para resistir à crise e até que o risco no mundo dos negócios esteja reduzido ao mínimo, isto é, até o famoso mercado propiciar de novo lucros dignos desse nome.Que o suposto ‘patrão dos patrões’ venha dizer, não que o Estado deve ajudar pontualmente as empresas a vencer as suas dificuldades, mas sim “orientar a economia por uns anos”, é muito mais do que têm dito e feito as mais recentes e improváveis ‘esquerdas’ por esse mundo fora, desde Bush a Merkel, passando por Brown. Num país onde os empresários se habituaram a viver “encostados” ao Estado, como recordou esta semana o Presidente da República, a confissão de Francisco Van Zeller aparece com toda a lógica e naturalidade.É por causa desta tradição do ‘encosto’ que o Governo tem a obrigação de ser cauteloso. E de resistir quanto puder às pressões para despejar os milhões que provenham do mais que previsível aumento do défice em 2009, depois de uma redução histórica alcançada com o sacrifício de todos, nas empresas de alguns que sempre viveram “encostados”.

E que não deixarão de aparecer, agora que existe uma predisposição geral para o Estado intervir, a fim de se ‘encostarem’ ainda mais do que na realidade precisam.


publicação de
JBS

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

IMPRENSA/ VISÃO


CRÓNICA DA ESTAÇÃO DOS CORREIOS
por António Lobo Antunes

Tanto silêncio nesta casa e tanta voz que me fala. Da janela vejo as mulheres que sobem a rua levando os sacos do supermercado. A rua é inclinada e elas devagarinho passeio acima, com os tendões dos braços saídos, os tendões do pescoço saídos, o cabelo a tremer. Porque razão me comovem na manhã suja, outonal, de setembro? As árvores começam a perder as folhas, pombos por aqui e por ali, vários cinzentos feios nas nuvens. Um par de homens a consertarem não sei quê num buraco. Deve ser isto o que as pessoas chamam vida e, se é isto, que miséria: ninguém sorri. Tenho de ir aos Correios buscar livros da América, de França, do raio que o parta: tira-se um papelinho com um número, espera-se entre gente que espera. Da última vez tirei o número 65, ia a procissão no 12. Fico séculos para ali, a olhar.

Espera--se para tudo, somos feitos não de carne, de paciência, se calhar já nascemos com um papelinho na mão. Retire aqui o seu bilhete e aguarde a sua vez. Aguardo a minha vez. Desde que me conheço que aguardo a minha vez. A minha vez de quê? E lá fora uma chuvinha sem peso. Um princípio não bem de frio, de desconforto.
– O que fazes no mundo, António?
– Aguardo a minha vez.
Uma senhora de papelinho para outra de papelinho
– Já não estou cá a fazer nada
e na época em que estava cá a fazer alguma coisa o que fazia? Emprego – marido – filhos – reforma – netos e agora varizes – coração – diabetes – ossos, este alto no pescoço. Amanhã análises no hospital, outro papelinho com um número, depois do papelinho da consulta em que ouviu
– Não gosto do seu alto
e o doutor a escrever, a arrancar a página, a estender-lha
– Precisamos de uns examezinhos.
A outra senhora
– Que direi eu com os miomas
e uma conversa densa de afluentes, sub-afluentes e lagoas acerca de pontadas, desconfortos, cólicas, o marido às voltas com a próstata, a pingar toda a noite. A do alto no pescoço
– Molha-me o pijama todo
e a que não tem alto enviuvou: uma coisa no pâncreas resolveu-lhe o matrimónio em três meses e enfiou-lhe, em lugar de uma, duas alianças no dedo:
– Mandei apertar a dele para não me cair
de modo que traz o que resta do marido ali. Ficam ambas a olhar as alianças, num interesse melancólico. O falecido cobrador do gás, grande, forte
– Vendia saúde
deve tê-la vendido toda e quando precisou de comprar não achou nas retrosarias, ele que a possuía aos montes.
– Nunca faltou ao trabalho
insistia a viúva, de tal maneira a saúde era inclemente e excessiva e parece que o amor ao medronho também, a calcular por referências laterais respeitantes ao facto de aos sábados à noite abrir a porta de casa a pontapé
(– Levava tudo à frente)
e acabar de gatas na cozinha a vomitar a alma. Fora isso era um cordeirinho
– Fora isso era um cordeirinho
bom esposo, bom pai, bom amigo, bom avô, até bom genro
– Até bom genro, calcule
sempre pronto a ajudar, sem amantes.
– Já lhe chegava o vinho

sugeriu a outra e a conversa amorteceu porque a viúva não gostou da insinuação e além disso o número dela aproximava-se. O problema era que o número anterior, um rapaz de bigode, trazia cinquenta cartas para registar, e nós todos, os que esperávamos, pensámos num julgamento sumário com condenação à forca e execução imediata, sem possibilidade de apelo ou recurso. Os restantes balcões de atendimento achavam-se vazios dado que as empregadas discutiam o gel nas unhas de uma colega que exibia dez navalhas escarlates na ponta dos dedos. O gel foi aprovado por unanimidade e exclamações e fiquei a saber que a proprietária das navalhas se chamava Suzete Mendonça e o namorado a queria sensual
– Como as actrizes porno
precisou uma de óculos e cachucho de pechisbeque no indicador e as colegas deu-me a ideia de acharem bem, mudando a linha do debate para cintos de ligas e artigos correlativos até voltarem, com um suspiro de penitentes, às suas cadeiras, onde ficavam minutos compridos a meditar nos cintos, esquecidas de nós, enquanto a que se chamava Suzete Mendonça estudava os apêndices com orgulho, a viúva rodava a aliança, saudosa do bom genro e eu principiava a zangar--me com o facto de ser tão traduzido, decidindo romper o contrato com a minha agência e imaginando a que se chamava Suzete Mendonça em atitudes sensuais, difíceis de conseguir numa criatura tão magra e com um quisto sebáceo na testa. Mas podia ser que o gel anulasse o quisto e incendiasse o namorado, com a ajuda do piercing que trazia na língua, uma esfera cromada do tamanho de uma bola de pingue-pongue que a obrigava a uma pronúncia de sopinha de massa. Daqui a quantos anos chegará a sua altura de já não estar cá a fazer nada? Das análises no hospital? Do médico
– Não gosto do seu alto?
das unhas de gel uma recordação perdida? Do divórcio, da reformazinha que aumentava os dias do mês? Do cinto de ligas no lixo? Do namorado a queixar-se do pâncreas? Toda a existência termina com a frase
– Precisamos de uns examezinhos
e uma senha de papel num laboratório de análises onde Suzetes Mendonças ainda por nascer demorarão a atendê-la, discutindo meias de rede e poses sensuais.

publicaçã de

João Brito Sousa

sábado, 11 de outubro de 2008

ENTREVISTA DE J.SARAMAGO


ENTREVISTA DE SARAMAGO
tarreta43@yahoo.com
«O Nobel não significou nada às portas da morte» Quando se juntam um escritor laureado com o Prémio Nobel e uma jornalista que conhece o homem e a sua obra em profundidade o resultado só podia ser bom. Pormenor: neste caso são marido e mulher. Eis uma conversa única entre Pilar, a entrevistadora, e Saramago, o entrevistado, por ocasião dos 10 anos do prémio mais importante da literatura universal Alterar tamanho A ENTREVISTA DE PILAR DEL RÍO A JOSÉ SARAMAGO DECORREU NA SALA PRINCIPAL DA BIBLIOTECA JOSÉ SARAMAGO, O PÓLO DA FUNDAÇÃO DO ESCRITOR EM LANZAROTE, QUE ACOLHE UM ESPÓLIO DE 15 MIL VOLUMES

Esta é uma entrevista que começa com um aviso e um pedido de Pilar del Río a José Saramago: «Duas coisas: primeiro, esta é uma entrevista em que a entrevistadora opina; segundo, respostas breves, está bem?» Ele contrapõe: «Bem, pedir-me respostas breves é o mesmo que pedir peras ao olmo.» Estão abertas as «hostilidades». As horas seguintes irão muito além da entrevista, passando também por acalorados debates e momentos de conversa. Assim não podia deixar de ser quando estão frente a frente duas pessoas que tão bem se conhecem.Garcia Marques disse sofrer como um cão quando vê os jornais. Sofres como um cão quando vês os jornais? Não, não sofro.

Creio que Gabo dramatiza um pouco esse choque, no entanto compreendo-o: também me desespera a falta de respeito pelo idioma. Porque somos o que pensamos, e dizemos aquilo que pensamos com palavras. Se as palavras são tão mal usadas, deturpadas, mal pronunciadas muitas vezes, que espécie de pensamento podem expressar? Isso é frustrante.Um jornalista fundamental em Espanha, Iñaki Gabilondo, afirmou, ao receber um prémio internacional, que a informação foi derrotada pelas empresas de comunicação. Agora, os jornalistas estão como que enfeitiçados pela serpente da política, pelos grandes financeiros, pelos espectáculos, pelo desporto, onde as vicissitudes humanas estão cada vez mais ausentes. Tens toda a razão. E agradeço, como cidadão, que Iñaki tenha tido a coragem de o dizer com tanta clareza. Porque o jornal que compramos todos os dias é, por assim dizer, uma fachada, não sabemos o que está por trás, que interesses levam a que uma vertente de um assunto seja mais desenvolvida e outras escamoteadas.

Achas que os meios de comunicação têm hoje mais influência no mundo do que as religiões? Influem de maneiras diferentes e segundo as circunstâncias, mas, no essencial, vão todos na mesma direcção...Os meios de comunicação reflectem a realidade ou moldam a realidade? Digamos que o jornalismo contribui para formar a realidade que lhe convém. Os dados que faltam aos cidadãos são tantos que as pessoas tendem a desinteressar-se do esforço para compreender o mundo em que vivem. Esta entrevista vai ser publicada numa revista cujo tópico é «o esplendor de Portugal». Essa imagem do esplendor de Portugal foi fomentada pelo fascismo e derivou de um falso sentimento patriótico. Tão falso que foi capaz de negar a sempre discutível verdade histórica, manipulando-a sem pudor.

Os hinos postos em circulação a partir de 1936, o da Mocidade Portuguesa, o da Legião, eram autênticos manuais em que se introduzia uma linguagem, um certo modo de pensar, uma forma degenerada de imaginar o que seria o Quinto Império, que nasceu com o padre António Vieira, e que Fernando Pessoa alimentou em tempos mais recentes. A história de Portugal, tão enaltecida por uma identidade resistente a tudo, não tem nada que ver com esse esplendor.Porquê? Porque nunca foi esse o nosso caminho. O tal esplendor teria que ver com um sentido messiânico dos destinos de Portugal. Na cabeça de muita gente esteve, e ainda permanece, essa ideia de que ser-se português é uma coisa diferente. Lembremo-nos da importância que teve a saudade à sombra do qual se definiram filosofias, modos de entender a história do país e a história universal... Tudo isto é bastante falso.

Quando se vive de ilusões é porque algo não funciona. A nossa imagem mais constante é a de alguém que está parado no passeio à espera de que o ajudem a atravessar para o outro lado. QUANDO O «EXPRESSO» PROPÔS À SUA ANTIGA COLABORADORA NA ÁREA DA CULTURA PILAR DEL RÍO QUE ENTREVISTASSE O PRÉMIO NOBEL PORTUGUÊS DA LITERATURA, A RESPOSTA VEIO PRONTA: «PARECE-ME BEM. ACEITO O DESAFIO» É curioso, fala-se do esplendor e não se fala dos êxitos actuais, das auto-estradas, da modernidade, mas sim da História. Surpreende que com um futuro tão incerto e um presente tão pouco saudável, com empresas em crise, falta de perspectivas, se fale de esplendor.

O esplendor de Portugal, quando aconteceu? Há um período em que, à distância, se pode falar de esplendor, a época dos Descobrimentos. Mas não haverá nenhum país que não tenha a sua época de esplendor real ou inventado. Se há país que pode orgulhar-se de uma época de esplendor, nos aspectos mais nobres da existência humana, é a Grécia. Mas isso foi há três mil anos, a Grécia de hoje é o furgão da cauda do comboio, como nós. Aqui volto à minha teoria das gerações: não vale a pena falar da identidade de um povo como algo inalterável, salvo as alterações da passagem do tempo e das condições económicas. À época e às gerações dos Descobrimentos sucederam-se épocas de decadência que correspondem, evidentemente, a outras gerações. Falemos de gerações, não de povos.Mas agora, neste momento, há algum motivo para estar satisfeito como geração? Não, creio que não.

Ou sim, haverá algum motivo. Podemos dizer que sobrevivemos até hoje, que certas condições económicas melhoraram.Que papel é, na realidade, o de Portugal? De subalternidade, evidentemente. Não temos força política, nem económica nem militar para chegar a Bruxelas e dizer o que entendemos e esperar que isso seja escutado. Bom, podemos ir, ouvem-nos, porque os membros da União Europeia podem expressar as suas opiniões, mas que elas sejam tomadas em conta, acho duvidoso. Isto não varia muito em relação ao passado: no século XIX um governo português ia ser apresentado ao Parlamento, mas não chegou a tomar posse porque o almirante da esquadra inglesa fundeada no Tejo não o permitiu.

Isto mostra o grau de dependência em que sempre estivemos. Disfarçada, no caso da Inglaterra, com esse belo nome de aliança e que, no fundo, não é aliança nenhuma, mas que um país está disponível para servir os interesses de outro país. A isso se chama globalização, que é só económica, não de direitos, ou deveres. Ainda não há muito tempo falava-se com frequência da formação de uma opinião pública poderosa capaz de intervir socialmente, algo que nos permitisse estar em paz com a nossa consciência, uma espécie de pacto de não agressão entre eu e mim mesmo... Dizer: conservo a minha independência de juízo, tenho uma opinião crítica. Estupendo, mas, para que serve isso?Serve para não ser cúmplice. Se os alemães se tivessem manifestado contra o nazismo e tivessem reivindicado os seus vizinhos judeus, não teriam sido cúmplices do Holocausto.

Calaram-se, foram cúmplices. Quantas mortes per capita pode aguentar a consciência dos cidadãos contemporâneos? Pôr a questão assim é como se houvesse um limite a partir do qual a consciência colectiva já não suportaria mais, mas não é assim. Convém-nos pensar, no entanto, que a consciência colectiva se rebelará um dia e impedirá que as aberrações sociais prossigam. Na verdade, não somos cúmplices, mas impotentes.Não estou de acordo: é cumplicidade, não impotência. Por exemplo, houve um acidente de avião em que morreram 154 pessoas, drama nacional e internacional. Porque era um avião. Quantos pobres terão de morrer por dia para que haja uma autêntica reacção social, um «até aqui chegámos» definitivo? Eu não vou tão longe nessa condenação.

Eça de Queiroz, numa crónica admirável, fala de uma reunião familiar em que estão sobretudo mulheres, tias, sobrinhas, sogra, conversando e fazendo os seus bordados e uma delas está a ler o jornal e vai dando informação às outras. A primeira coisa de que fala é de uma grande inundação na China em que morreram milhares de pessoas. Isto não desperta a mais pequena comoção; depois há outra notícia sobre qualquer coisa que aconteceu em Paris, igualmente trágica mas sem as mesmas consequências, e isso já causa um certo alarme. Finalmente, há uma pequena notícia que diz que a prima Joaquina caiu e torceu o tornozelo, e aí toda a gente se levanta para ir visitar a prima Joaquina. A proximidade de um desastre, mesmo que seja muito relativo, pode comover muito mais que uma tragédia longínqua, que acaba por tornar-se abstracta. Quatro mil chineses mortos nas inundações, em que pode isso tocar-nos?

Quantos mortos per capita aguenta esta sociedade supostamente herdeira dos grandes princípios do humanismo? Pois digo-te que não há limites, não há quem estabeleça o limite do insuportável. Em nome de que é que se estabeleceria um limite?Estabelecemos o limite dos rendimentos per capita, também haverá o dos mortos per capita... Perguntava Almeida Garrett: Quantos pobres eram precisos para fazer um rico? Vamos lá ver: toda a gente sabe que a riqueza se alimenta da pobreza.Não, as pessoas não sabem. Se os mestres do pensamento, se os partidos políticos de esquerda não o dizem, não sabem que são necessários muitos milhões de pobres para que haja um rico, simplesmente olham para os ricos com admiração, sem pensar que essa riqueza está construída sobre a pobreza de milhões de pessoas.

Vamos ver: todos sonham com ser ricos, ninguém sonha com a pobreza, não somos São Francisco de Assis, que renunciou a tudo para viver pobre e, acho eu, equivocado. Pelo facto de haver mais um pobre, não se resolvia o problema, mas sim combatendo a pobreza... Há um problema ético grave que não parece estar a caminho de ser resolvido.. Depois da II Guerra Mundial discutia-se na Europa sobre progresso tecnológico e progresso moral, se podiam avançar a par um do outro. Não foi assim, pelo contrário, o progresso tecnológico disparou a alturas inconcebíveis e o chamado progresso moral deixou de ser, pura e simplesmente, progresso e entrou em regressão.

O progresso tecnológico disparado até ao infinito conseguiu ridicularizar conceitos como a bondade. Fala-se do «bonismo», os cínicos fartam-se de rir. Quando se ridiculariza a bondade, no fundo, a única conclusão é que se está a justificar a delinquência.Como forma de governo. Não me refiro a uma delinquência explícita, activa, mas a uma certa atitude delinquente que se justifica pela indiferença e também pela incapacidade de agir. E acabamos por ser cúmplices de estados delinquentes que permitem que o número de pessoas com fome, segundo a FAO, aumentasse em 2007 em 50 milhões de pessoas, em virtude da liberdade de mercado, a democracia de mercado e todos esses conceitos incompatíveis com a ética de que ninguém fala, a não ser para ridicularizar. E eu pergunto: quem defende a bondade? A bondade deve ser defendida pelos bons, mas como é que isso se faz? Não é raro que os meios de comunicação social alimentem o pior que a sociedade manifesta.

E a escola, que foi o lugar por excelência da aprendizagem, falhou rotundamente. No século XIX dizia-se que abrir uma escola era fechar uma prisão. Mas cada vez são necessárias mais prisões e as escolas funcionam pior. E há a crise da família, que na realidade deixou de ter o papel que tinha. A questão está em saber o que pusemos no lugar dela. Recentemente li que numa cidade dos Estados Unidos tinha sido considerado legal que os alunos entrassem na escola armados. Isto já é pura loucura.Para o que haverá uma saída... Há uns anos, dizia: «Isto vai ter como consequência o regresso de um puritanismo absolutamente exacerbado.» Hoje já não estou tão seguro de que assim seja.

Nos Estados Unidos, sim, a tendência parece essa. Quando a candidata republicana a vice-presidente dos Estados Unidos diz que o criacionismo deve ser ensinado nas escolas ao lado do evolucionismo, já estamos loucos.E casa a filha de 16 anos por estar grávida. As imposições religiosas triunfam. Os valores da solidariedade e responsabilidade não podem impor-se porque foram ridicularizados. Eram valores laicos e a sociedade não é laica. E tão pouco o é que, tendo renunciado a valores de uma religião, está a entrar-se na participação em seitas supostamente religiosas.As religiões não são, todas elas, seitas? Não importa que todas o sejam, o que é grave é que tendo deixado de crer numa religião corras a meter-te numa outra que é o mesmo com outro nome.

O ser humano é um animal doente. E parece que não temos cura.Frente a este despertar mágico-religioso constata-se certa falta de interesse do cidadão pela política. Um dos índices do interesse é a participação eleitoral. Se a participação eleitoral é alta, pressupõe-se que uma parte importante da população está interessada na vida do seu país e toma-se isso como uma vitória da democracia. No entanto, num país com uma enorme reputação de democrático, os Estados Unidos, as eleições são muitas vezes participadas por uns 30 por cento da população. Não entendo... Talvez seja a lógica dos partidos, não da sociedade. AS PAISAGENS VULCÂNICAS DE LANZAROTE, A ILHA CANÁRIA ONDE SARAMAGO VIVE HÁ 15 ANOS, TÊM SIDO O CENÁRIO ELEITO PARA AS REPORTAGENS FOTOGRÁFICAS. O ESCRITOR DESLOCOU-SE À PRAIA PARA ESTA FOTOGRAFIA

Se vivemos numa sociedade de mercado, se o mercado regula a democracia, parece que os governos têm de ser disciplinados segundo os interesses dos grupos económicos, e devem socorrê-los, chegado o caso, como nesta crise, para que o sistema não entre em quebra. Esta crise está a fazer que se desmoronem muitos princípios liberais ou neoliberais: parece que afinal o mercado não se regula sozinho, que pode colapsar, e então, oh, há que chamar o Estado. Está claro: privatizam-se os lucros, as perdas assumimo-las todos. Parece que esta crise acabará com uma volta ao Estado perante um liberalismo que se vendia como a salvação, o fim da História... Embora também possa acontecer que se mude alguma coisa para que tudo continue na mesma.

O capitalismo tem a pele dura.É a ausência da economia moral, essa que não se limita a estudar os fluxos dos preços do pão, mas que procura que toda a gente tenha pão. Os economistas trabalham sobre o que há, e, a partir do que há, fazem as suas previsões, mas que alguém proponha essa ideia da economia moral significa que nem tudo está perdido.Dizem grandes economistas que os bancos centrais são as entidades que permitiram os fenómenos que deram lugar à crise e, apesar disso, os analistas convencionais calam-se. O seu silêncio cúmplice frente aos paraísos fiscais, a sua pretensa independência, eram pretextos para gerir a economia a favor dos poderosos, coisa já evidente. Parece que é necessário revelar a natureza dos bancos centrais, assim como as cumplicidades das páginas económicas dos jornais. As causas são conhecidas, as consequências não o são tanto, mas são sofridas por milhões e milhões de pessoas. Portanto, a questão está sobre a mesa com uma urgência que todos nós sentimos: é preciso pensar, propor, actuar... Muita coisa se resolveu, no passado, com a participação dos cidadãos. Ou se ajudou a resolver.

Agora não. O Partido Comunista Português organizou manifestações enormes no ano passado avisando da crise e praticamente não foram notícia nos meios de comunicação. Essa é outra. Acontece que o Partido Comunista Português, e não é por ser o meu partido, no âmbito parlamentar tem trabalhado muito, faz propostas, apresenta sugestões e ideias, e isso não passa na comunicação social. Há um filtro, tudo quanto vem daquele lado é ignorado. Parece que os jornalistas, de antemão, sabem que se uma notícia não vai agradar ao director, evitam-na. SARAMAGO COSTUMA CORTAR O CABELO, MAS PARA ESTE TRABALHO DO «EXPRESSO» DEIXOU-SE FOTOGRAFAR COMO NUNCA FOI VISTO: NA PELUQUERÍA UNISEX LOLA DE LEÓN, EM ARRECIFE, A CAPITAL DE LANZAROTE Isso seria cobardia e tem desculpa.

É que se riem, «lá está o Jerónimo de Sousa outra vez». Alguns sim. Esses são os herdeiros dos «neocons», mas não da empresa, coisa que parecem não saber.Na aldeia da economia global que hoje é o mundo, Obama, de quem és apoiante, quer ressuscitar o sonho de cidadania em contraponto ao conceito de consumidor, agora vigente. Não sei. Nós temos sempre a tendência de achar que agora vem aí uma terceira via, agora é... Depois, os factos põem as coisas nos seus lugares. Há que esperar o resultado das eleições. Os atentados contra as torres vieram mostrar que os Estados Unidos não são inatacáveis, e isso desequilibrou o estado de espírito da população, dividida entre o medo do que vem de fora e essa espécie de ideia imperial de que, pese a tudo, os Estados Unidos são a maior potência mundial.

Agora, o que pode fazer Obama? É importante que tenha uma maioria democrata no Congresso.E, se tiver essa maioria, achas que Obama vai conseguir mais fundos para investigar a cura de doenças, segurança social e educação, ou vai deixar-se levar pela bandeira, pelos símbolos do poder? Pelo pouco que conheço dele que, no fundo, não é nada, apenas o que posso deduzir das suas declarações, creio que isso não acontecerá.E quando é que vão acabar, vocês, homens, com a ideia de pátria e das bandeiras? Ah, isso parece ser inseparável da natureza humana.Qual foi a origem da bandeira? Não digo da portuguesa, mas da bandeira em geral. A origem… Há diversas ideias, a principal é que a antepassada mais antiga da bandeira nasceu no Egipto dos faraós e era o útero da vaca, pendurado na ponta de um pau e passeado nos cortejo.

Era um símbolo de fertilidade, mas a partir disso, que se podia aceitar, tudo degenerou, até se transformar em qualquer coisa pela qual muita gente acha que se deve dar a vida. A vida pode dar-se por muitas coisas, mas não por um pedaço de pano, ainda que as pessoas digam, «mas isto é a Pátria». Que não é, pois se um regime muda, muda a bandeira. O facto de passar da monarquia à república não teria de mudar a bandeira. Mas muda.Ficam bem nas competições desportivas, e pintadas na cara. E quando, numa reunião internacional, temos atrás aquelas bandeiras coloridas.

É a representação «bandeiril», por assim dizer, dos países que ali estão representados. Há alguma coisa de cómico nisto. NO RESTAURANTE CHEF NIZAR, EM ARRECIFE Há uma única bandeira que não é cómica, a que os guias usam para que os turistas não se percam. Isso tanto pode ser uma bandeira como uma revista ou qualquer coisa que se levante no ar. No fundo é reconhecer a sua capacidade de converter-se em guia.Mas ninguém morre pela bandeira dos turistas, mas morre-se pela da pátria. Aí vem o culto dos antepassados, vêm as histórias edificantes, durante as guerras, em que um soldado avança com a bandeira até chegar exausto e colocá-la.

Recorda aquela já célebre escultura, em Iwo Jima, uns quantos soldados americanos plantando a bandeira, situação que parece que foi preciso repetir mais que uma vez porque a fotografia não saía bem. Enfim, tudo isto é caricato, mas, se aparece uma pessoa a dizer que isto é caricato, logo lhe chamam nomes.Ou processam-no. A razão, onde fica? Nós vivemos num tempo que se caracteriza pela irracionalidade dos comportamentos gerais, e pôr aqui um pouco de senso comum, no sentido de que, acima de tudo, o que há que proteger é a vida, e que a prioridade absoluta é o ser humano, é quase impossível. E mais se esse ser humano enfrenta outro ser humano porque crê num outro deus, ou porque, ao ter uma outra tradição, vê o outro como um inimigo.

A partir do momento em que vemos o próximo como inimigo, a guerra está declarada. A intolerância não é uma tendência, é uma brutal realidade. COM AS SOBRINHAS CHINESAS ADOPTADAS POR MARIA, IRMÃ DE PILAR Até se fala de quantos pobres teremos de eliminar para que cada pessoa mantenha o seu bem-estar. Não eliminar, porque assim perdemos dinheiro. Chegámos à conclusão de que a riqueza se alimenta da pobreza, mas de pobres vivos.Está bem, em 2008 temos mais 50 milhões de pobres, se houver outros mais, temos um problema. Só que estamos a matá-los com o aquecimento global, por exemplo. A questão é que podemos, com os meios actuais, solucionar problemas sem necessidade de recorrer à guerra. É uma nova época de obscurantismo. Há também vozes que se levantam para apelar à razão e ao respeito pelos direitos de cada um, mas também pelos direitos próprios, para que não sejam menosprezados, não aconteça que eu respeite os direitos dos outros e ninguém esteja disposto a respeitar os meus.

Outra grande questão do nosso tempo é a igualdade da mulher e do homem. «Não aconteça que eu respeite os direitos dos outros e ninguém esteja disposto a respeitar os meus»... Ironia à parte, há algo em que podemos estar de acordo: vocês, mulheres, estão em movimento. Claro que se desejaria que esse movimento produzisse resultados imediatos, mas há a inércia da sociedade que resiste a transformações. Agora, o que se progrediu nesse aspecto nos últimos trinta ou quarenta anos não se tinha avançado nunca na história da Humanidade. Que continua, em regiões e países, em crenças e religiões, esse estatuto de subalternidade em que vos colocaram, é certo; mas isso está a mudar, e não pára. O que eu desejaria era ver-vos mais interventivas no plano social, no plano das ideias.As mulheres poderão ir ganhando espaço pouco a pouco, mas lembra-te de que as regras estabelecidas são dos homens e para os homens. Não se vai deixar que as ultrapassem, ou permitir que as mulheres estejam num plano igual, coisa que nunca sucedeu.

Não vão ter outro remédio.E não vão matá-las? Que ideia! Não. Que ideia… NO JARDIM DA SUA CASA EM TÍAS Por que morrem tantas mulheres nos últimos tempos? Isso não tem nada a ver com as lutas sociais ou com…Tem, sim. Não, isso não tem nada que ver. Sempre, e em países desenvolvidos, como sabes, nesse capítulo das relações humanas e das relações do casal, como nos países nórdicos.Há muitas mortes… Essas mortes são…....porque se acabou o papel do pater familiae. Não só, é porque as pessoas não têm a coragem, de um lado e de outro, de dizer «pois, isto falhou, vamos separar-nos». Porque é que um homem mata a mulher com quem está casado ou com quem vive? A razão principal é que a relação falhou. O que é que impede as pessoas de se separarem?A economia. Nem sempre.Basicamente é a economia. E as normas sociais que obrigaram as mulheres a casar-se e a serem submissas. E, como é que se educam os homens?

O ser humano é um animal doente porque não é capaz de reconhecer, ou de inventar, o seu lugar na Natureza e na sociedade. Nós não falávamos na crise da instituição familiar?A família, o grupo humano que se reúne uma vez por ano, e vão todos incomodados, protestando. Bela instituição. Cada um com o seu papel, resignado, interpreta-o de acordo com aquilo que se espera dele.. A norma social vigente manda, mesmo virando as costas à realidade, fazer de conta que se continua a viver nesse «melhor dos mundos» que é a instituição familiar.Mas um intelectual não pode dar-se a esse luxo. A questão é que, e é uma banalidade dizê-lo, as sociedades mudam mais depressa do que nós somos capazes de mudar. Há um desajuste entre a velocidade de mudança da sociedade no seu todo e a capacidade de mudança de cada pessoa. SAUDADO POR FERNANDA MENDES, UMA TELEFONISTA DE FÉRIAS EM LANZAROTE Então vivemos numa época de desajuste total.

Vivemos numa época de esquizofrenia, com um pé no hoje, e até, nalguns casos, vivemos com um pé no amanhã, e o outro pé ficou atrás.Na Idade Média. Exactamente. Nós somos assim, doentes e não fazemos nada. Faz-se tudo para curar as doenças que sobrevêm à doença de origem, mas muito pouco para enfrentar essa doença de origem. Se não parecesse pretensioso com isto... mas enfim, atrevo-me a dizê-lo: acho que na sociedade actual falta-nos filosofia. Filosofia como espaço, lugar, método de reflexão, que pode não ter um objectivo determinado, como a ciência. Falta-nos reflexão, precisamos do trabalho de pensar, e parece-me que, sem ideias, não vamos a parte nenhuma.Vamos mudar de tema. As pessoas vão querer saber da tua doença e como estás.

Mas tu sabes isso e, nalguns aspectos, melhor do que eu, porque, durante semanas, estive entre um lado e outro, enquanto tu estavas lutando como uma leoa pela minha vida. Mas, se tu me fizeres perguntas concretas, tentarei dar-te respostas.Quando estavas no hospital, desde a janela do teu quarto podia ver-se a tua casa, quiçá vias também o mundo. Ao longo da doença, quase às portas da morte, o que era o mundo para ti? Não tinha muita importância. Se alguém se aproximasse de mim para me consolar pelo facto de estar doente, dizendo «Saramago, você está muito doente, mas ganhou o Prémio Nobel, ainda é alguma coisa, não?», eu tentaria dizer que sim, era alguma coisa, mas, na situação em que me encontrava, não significava nada. Não era o Prémio Nobel que se ia apresentar ali com as receitas e os medicamentos necessários para que me salvassem.

Que outras coisas relativizaste? Eu creio, Pilar, que me relativizei a mim mesmo. Aquilo que se estava a passar ali era algo que não podia evitar, cujas consequências finais não podia conhecer, embora fosse de admitir que não resistisse, mas, o que é curioso, é que isso não suscitou em mim nenhuma preocupação. Não me senti preocupado pelo facto de aquela doença poder vir a resultar na minha morte. Pensava nela no quadro da própria doença e, portanto, algo que podia ser inevitável e, contra o inevitável não podia fazer nada. As únicas pessoas que podiam fazer alguma coisa por mim eram, evidentemente, o pessoal do hospital, os médicos, tu mesma. O que acontece é que estava muito seguro, embora nunca o tivesse pensado assim, com esta simplicidade, de que estavam a fazer tudo aquilo que podiam para resolver a gravíssima situação em que me encontrava.

Mas tu própria recordarás que não tive nunca manifestações de angústia, de medo, já não digo o chamado medo da morte. Estava atento ao que os médicos diziam, atentíssimo àquilo que me transmitias das conversas que tinhas com eles. Porém, algumas coisas dessas, as mais importantes, só me falaste delas depois de o problema já estar resolvido, ou a caminho de resolução. Poderia chamar-se a isto uma manifestação de estoicismo.Não, foste muito corajoso. Nem sequer era isso, quer dizer, uma pessoa muito valente, que sabe que está numa situação difícil, de doença, e que se arma de todas as suas forças para lhe resistir. Não, eu nunca me armei de forças nenhumas, para já porque não tinha muitas, mas sobretudo porque…

Não é que me tivesse resignado à hipótese de não escapar, não era resignação. No fundo é como se dissesse, e devo tê-lo pensado mais ou menos assim, a minha situação é esta, vamos a ver como é que se sai disto. E como, e isso pesou muitíssimo, parti da confiança nos médicos praticamente desde os primeiros dias em que eu me tornei consciente, porque houve uns dias em que estava entre cá e lá e o meu grau de percepção da realidade não era grande coisa, mas houve um momento em que senti que já estava com os dois pés deste lado, então entrou em mim uma grande confiança em relação aos médicos que tinha, e essa confiança foi a minha melhor arma.

Sabia que eles estavam lutando para ajudar este velho, e eu podia pensar, e pensei, que eles estariam a fazer tudo ao seu alcance para não deixar que fosse lá para o outro lado, para o outro bairro. E havias tu. E havias tu. Porque, no fundo, tu não és médica, não receitaste nada, que me lembre.E isso como te mudou? Houve alguma mudança. Hoje sou uma pessoa muito mais serena, como se… Não quero dizer mais sábia, porque a doença não podia ter-me ensinado nada, mas é uma espécie de mudança no meu próprio horizonte. Quer dizer: a doença veio dizer-me que morrerei, coisa que julgava saber antes, e que sabia antes, evidentemente, mas uma coisa é sabê-lo, como se traduz naquela frase clássica, «eu nunca penso na morte, só espero que ela não pense em mim».

Isto é uma frase que presume de muita firmeza de ânimo, mas que, no fundo, não é nada, é mais uma daquelas coisas que se dizem. Então penso que ganhei com esta doença. Não vou agora cair na retórica fácil de que me tornei noutro homem. Sou o mesmo homem, mas… creio que a palavra é essa, ganhei serenidade. Mesmo o facto de saber que, um dia destes, a mesma doença ou outra me atacará e que, nessa altura, já não haverá remédio, não me preocupa. E ainda bem, porque uma pessoa não pode viver com preocupações desse tipo. E há uma coisa que, evidentemente, eu creio que me ajudou muito, num certo plano: foi não ter perdido a capacidade de pensar, de imaginar, de manter o espírito desperto. Recorda os diálogos que tinha com os médicos, em que a voz irónica era a minha, sempre, e, às vezes, há que reconhecê-lo e dizê-lo aqui, pesadamente irónica.Sarcástica. Sarcástica, e eles, muito bem-educados, aguentavam, achavam graça.

Mas não era eu quem falava nessa altura, era uma espécie de outro que a doença tinha feito subir à superfície.Que está em «A Viagem do Elefante», de alguma maneira. Eu creio que sim. «As Intermitências da Morte», por exemplo, descreve algo visto do lado de fora. «A Viagem do Elefante», que não descreve nada daquilo que me aconteceu, está do lado de dentro, e isso é que faz a grande diferença entre os dois livros e faz com que eu me sinta, em relação à «Viagem...», dentro do livro. Claro que sou o autor, sou o narrador, sou, de certa maneira, uma personagem da história, mas o empenhamento posto neste livro não é apenas o do autor que está a escrever um livro e que espera que ele seja bem recebido, e faz tudo o que pode para que seja bom, bem escrito, bem armado, bem arquitectado. Não, isto é outra coisa. No fundo, quase diria que este livro se apresenta como uma espécie de testamento, que espero que não o seja, que dentro de alguns meses esteja com outro livro.

Que não seja como este. Que não será como este. Este livro, como tu sabes, foi escrito em duas partes: quando eu entrei no hospital tinha 40 e tal páginas escritas, e o resto, o que faltava, foi escrito depois. E, entre uma coisa e outra, estive numa situação em que não sabia se o ia continuar. E admiti que talvez não viesse a poder terminar o livro. Mas não lhe dei demasiada importância, o que significava que, no fundo, ainda não acreditava que isso acontecesse.Disseste-o, uma manhã, por essas mesmas palavras: «Estou a pensar que talvez nunca acabe este livro.» Pois… Mas no fundo, hoje, a esta distância, e recordando, acho que não acreditava naquilo que dizia.Mas disseste-o, José, e eu vi-te de tal maneira que disse aos médicos que fizessem o possível para te dar mais três meses de vida, para poderes acabar o livro. Fosse assim ou não fosse assim, a verdade é que estamos aqui e o livro está feito.É um livro diferente dos outros livros.

É, é.Feito com mais «carne», mais de dentro, mas também tens mais ironia e mais sarcasmo. É, sem dúvida, o teu livro mais duro. É. Nesse sentido, sim.Também tem uma emoção… Repara que, tendo escrito o livro naquela situação anímica, parece que a tendência seria para o carregar de dados.......depressivos. E, sobretudo, autobiográficos. Não há um só elemento autobiográfico, pelo menos em primeiro grau. Se digo que vejo este livro como uma espécie de testamento, e em princípio não há nada mais pessoal que um testamento, se realmente se aceita essa ideia…....tens de explicá-la. Não é explicável, e não vou perder tempo em dizer porque acho que este livro pode ser uma espécie de testamento. O que tinha era um desejo não muito consciente, a vontade, era a vontade, de terminar um trabalho começado, como se dentro de mim tudo se revoltasse contra a ideia de deixá-lo inacabado.

E, felizmente, o que aconteceu foi o melhor: escapei, e não só para ficar reduzido a um vegetal, recuperei, estou a recuperar forças, energia, capacidade de trabalho, e há esta ideia muito tranquilizadora de que a minha mente não foi tocada, de que aquilo que tenho dentro da cabeça funciona, e que talvez funcione por um tempo mais, que penso aproveitar em todos os planos: no que tem a ver com a criação literária, no plano vital, nas relação com os outros, na relação contigo.Não vou pôr isso. Sim, vais pôr. E tudo isto, que podia ser em algum caso conflituoso, dramático, sei lá... envolto nessa enorme serenidade que habita dentro de mim. Enorme, enorme, enorme... No fundo, é como se eu já soubesse tudo. E não é certo, claro que não. Mas há uma forma de sabedoria que, sem querer, evidentemente, creio ter alcançado e que se mantém tal qual, desde que me tornei consciente disso, até hoje, e que espero que se mantenha, porque me dá uma grande força.

Não é a energia recuperada, não são os 16 quilos que ganhei sobre o que pesava quando saí do hospital, é outra coisa, como se pudesse dizer a mim mesmo que estou no lugar certo, fazendo o que devia. Bom, mas enfim, a palavra-chave é esta: serenidade. Serenidade. E, quando estávamos a falar há pouco da necessidade filosófica… a filosofia, pelo pouco que sei dela, pode conduzir exactamente a isso, a essa serenidade. Ler o Montaigne, por exemplo, é uma lição. Que não é dada em termos de relação mestre-discípulo, é simplesmente um modo de sentir a vida, de viver a vida, e que culmina, quando acontece, nisto que torno a dizer, e já me estou a repetir demasiado, que é a serenidade.Esta entrevista sai depois do 10.º aniversário do Nobel. Julgo que o Prémio Nobel é uma coisa em que se pensa mais enquanto não se tem, não? Em certo modo, sim.

Creio que quando se está escrevendo, trabalhando, o Prémio Nobel aparece como uma possibilidade, muitas vezes remota, difícil de alcançar porque o juízo sobre a obra realizada é feito pelos académicos suecos, que não têm de dar explicações nem justificações.Vamos desfazer alguns equívocos: Academia Sueca, 18 pessoas respeitáveis, não subornáveis, não compradas pelos governos, ou lobies, com suas fontes de informação, que estudam e decidem livremente. Isso é sabido.Sim? Há pouco ouvi um glorioso comentarista português dizer na TV que é necessário muito salão para receber o Nobel, como se os académicos estivessem sujeitos a essa mundaneidade. Isso é um disparate. Eu tenho razões para pensar que o prémio me estava destinado em 1997.

E nota que o Dario Fo, depois de ter sido anunciado que o prémio era para ele, telefonou para nossa casa a dizer, «olha, sou um ladrão, roubei-te o prémio, mas deixa lá que para o ano vais ter…» Porque não o tive nesse ano? Não posso dizer, mas, se há um factor, pode ser este: o ICEP, em 97, e não era um organismo literário, não era do Ministério da Cultura, decidiu levar-me a Estocolmo para dar umas conferências, umas entrevistas, assinar livros, alegando ou insinuando que isso seria útil e que poderia levar à concessão do prémio, dado que me tornava mais visível, etc.Tu não querias ir, eu não te acompanhei, não estava de acordo. Comecei por dizer que não, pareceu-me um disparate, e até usei aquela comparação do pai que quer casar a filha e anda a dizer que ela é uma excelente dona de casa, a ver se a coloca. E, tal como poderia acontecer ao pai, o efeito pode levar as pessoas a uma atitude de rejeição, porque parece que lhe querem impor algo.

Creio que algo de similar aconteceu em Estocolmo em 97. Estava lá e avisei. Recordo que até o nosso embaixador, o Paulo Castilho, abundava nessa mesma ideia, que a minha ida lá podia facilitar, e eu, «não, não. Ponham-me como membro da Academia Sueca, e garanto-lhes que se me atirassem com um candidato à cara, aquilo que faria era vetar».Toda esta história é para dizer… ...que a Academia Sueca, quando se viu como funciona, se conhecem os seus membros e se tem relações de amizade com alguns deles, sabe-se que não são sensíveis nem a lisonjas nem a pressões. E o facto de se dizer que o prémio é concedido por razões políticas ou estratégicas não o torna mais verdadeiro. Podem enganar-se e dá-lo à pessoa errada, ou pode haver alguma vez um sentido de oportunidade, não lhe chamo oportunismo, e dizer «Já era hora de reconhecer....»....que não era dado há muito tempo a uma mulher. Digamos que já era altura. De qualquer forma, o pior que se pode fazer a um autor é um movimento a favor da sua candidatura. Um autor não é um candidato, é, simplesmente, escolhido entre milhares que a Academia Sueca mantém na sua lista.

Diz-se, não sei se é assim, que a academia tem duas listas: uma grande, que pode chegar até aos 200 nomes, e outra mais pequena, de cinco, seis, sete onde parece que estão os que têm mais probabilidades.Essa lista existe. Sim, mas nunca é pública. Há uns anos, Mário Soares, que nessa altura era Presidente da República, foi à Suécia e disse-me: «Bom, vou lá falar em si, e tal…» E quando voltou encontrámo-nos num acto, e ele diz-me: «Bem, não há nada a fazer. Se não há um lóbi, é muito difícil.» Pois o dr. Mário Soares estava enganado.Ele esteve com vários membros da academia que vieram a Portugal, e tinha desejado muito o Nobel para Miguel Torga. O problema é que uma condição fundamental para receber o Nobel é estar traduzido. Eu creio que alguns livros do Torga estão em sueco, embora não esteja a obra poética... Não sei. Efectivamente, o grande trunfo português era o Torga, e não se conseguiu, não sei porquê. A Academia Sueca, soberana nos seus juízos, por razões que desconheço…Jorge Amado também não conseguiu.

Também não o teve o Jorge Amado, nem o João Cabral de Mello Neto, sendo o enorme poeta que foi, Enfim, ficam sempre esquecimentos e injustiças, a Sophia, por exemplo… Em entrevistas disse que se fosse membro da Academia Sueca daria o prémio à Sophia de Mello Breyner. Enfim, calhou-me a mim. E agora quero chegar à outra parte que me importa e creio que importa também à Academia Sueca: o depois do prémio. Isto é igual para todos: o interesse internacional, as edições, os convites para conferências, os doutoramentos honoris causa, tudo isso. E nós tivemos de vivê-lo, não estamos aqui a queixar-nos, mas há uma coisa que presumo: é que no plano... vou usar a palavra, no plano cívico, estive à altura do prémio.Não há dúvida. Creio que, depois do prémio, cumpri as minhas obrigações como cidadão.Incluindo do ponto de vista literário. García Márquez, num artigo magistral que escreveu antes de ele próprio receber o Nobel, falava da maldição do Nobel.

Creio que não há nenhum escritor laureado que tenha escrito, depois de receber o Nobel, tantos livros como tu. Günter Grass escreveu as memórias, escreveu «O Meu Século», Coetzee está publicando e muito bem... e há outros... enfim, os livros, a participação em tanta coisa em que nós estivemos.Estes dez anos foram os dez anos que mudaram a tua vida? Eu acho que não, Pilar. Quer dizer, minha vida tornou-se mais agitada, mais participante. É algo que aconteceu, que teve consequências, mas não mudou nada em mim. Entre o antes e o agora houve uma continuidade natural.Falámos do Nobel, da doença, da situação política, da economia, e agora falta-nos a Fundação. Supõe-se que não a fizeste para enriquecer nem para aumentar a tua glória. Gostaria de saber como é que se enriquece uma pessoa criando uma fundação. A Gulbenkian existe porque, antes dela, existia uma grande fortuna que, felizmente, foi aplicada na sua criação. Agora, uma fundação que foi fundada com o capital do escritor, que cria trabalho, que não depende da administração, que recebe mensalmente uma parte dos direitos de autor para manter uma linha de actuação.

Que é pública. Claro. Os documentos fundadores são públicos, basta ter a simples curiosidade de os consultar para saber quais são os nossos objectivos. A Fundação existe porque tem uma função imediata, que é a da defesa da integridade da obra do autor, não a promoção da obra, que está nas mãos dos seus editores, isso é óbvio, em Portugal a Editorial Caminho, outras editoras por aí fora, a agência literária que me representa faz o que pode nesse capítulo.A Fundação preocupa-se com a defesa dos direitos humanos. Sim, e haverá iniciativas nesse sentido já, assim como com o meio ambiente. E tenta, de alguma forma, ser agitadora do meio literário em Portugal. Sabemos que a morte é uma chatice, claro, e no caso dos escritores é uma dupla chatice.

O escritor morre e a sua obra, geralmente, entra numa espécie de nuvem negra. Não é que não continue a ter leitores, mas já não é a mesma coisa. Ora, nós propusemo-nos organizar a recuperação desses autores, recuperação pelo menos emocional. O primeiro acto foi no Teatro São Carlos, sobre o Jorge de Sena, e foi um êxito, convidámos pessoas competentes para expor as suas ideias sobre a obra e o autor, e agora já se fala da reedição da obra, que estava parada, e talvez de trazer os restos de Sena e a sua biblioteca a Portugal. Em Outubro vamos fazer uma outra sessão sobre o José Rodrigues Miguéis, outro dos autores que entraram nessa nuvem escura, que é um grande ficcionista e um grande ensaísta. Depois disso, provavelmente, será o Vitorino Nemésio, estamos a pensar no Almada Negreiros, que na minha opinião escreveu um dos livros mais importantes da literatura portuguesa, o «Nome de Guerra». Na história da nossa literatura houve duas revoluções: uma, a do Garrett...Estás a falar de projectos da Fundação?

Sim, e de Literatura: uma revolução, a do Garrett, com as «Viagens na Minha Terra», e a poesia, evidentemente. E outra, a do Almada Negreiros, com o «Nome de Guerra». Portanto esta é a sequência. E o quinto vai ser o Raul Brandão, de quem costumo dizer que não é preciso ser-se um génio para escrever um livro genial: o «Húmus», que é um livro único na literatura portuguesa. Este plano mostra que a fundação está a olhar ao redor para dar um espaço a outros autores.Mas não será só literatura, haverá música, exposições, encontros políticos, uns serão na Casa dos Bicos, outros em lugares mais amplos.Está a página da Fundação, com a sua capacidade de intervenção na blogosfera... por exemplo, a campanha a favor do poeta nicaraguense Ernesto Cardenal, vítima de uma série de cumplicidades entre os juízes e o poder político. Como sabemos, Cardenal é um padre, é um bom poeta, um excelente poeta, que diz aquilo que pensa sobre quem seja e está a pagar por isso.

Pediu-se-nos que interviéssemos, fiz uma declaração de apoio a Ernesto Cardenal, que está na página Web, no blogue. Intervenções deste tipo serão determinadas pelas circunstâncias. A actuação no plano dos direitos humanos, no meio ambiente, uma acção cultural que, não tenho dúvidas nenhumas, irá enriquecendo à medida que o tempo passe, é o que desejaria que acontecesse. E que as pessoas se perguntassem: e agora, o que é que vai fazer a Fundação José Saramago? É preciso dizer que a ideia da fundação não nasceu na minha cabeça, nasceu na tua cabeça.Na minha, não. Bom, estávamos em Arrecife com Fernando Gómez Aguilera e José Juan Ramírez, da Fundação César Manrique, e também com José Sucena e Antonieta, que tinham vindo de Lisboa. A conversa girava à volta do aumento de trabalho e consequentes responsabilidades que, nos últimos tempos, vinham caindo sobre a cabeça das pessoas que trabalham connosco.

De toda a parte chegavam-nos solicitações e propostas a que era preciso dar resposta, mesmo quando era impossível dar-lhes satisfação. Há muito tempo que tínhamos deixado de poder defender-nos por trás de umas fronteiras que, apesar de serem imaginárias, alimentavam a ilusão da antiga privacidade. Agora era uma autêntica invasão, como se toda a gente pensasse que o José Saramago devia ter algo para dizer. Multiplicavam-se as chamadas telefónicas, os correios electrónicos, as visitas vindas de toda a parte, com prejuízo do meu próprio trabalho e do meu descanso. Era nisto que falávamos quando alguém, meio a sério, meio a brincar, disse: «O vosso problema foi o José ter-se transformado numa espécie de património da Humanidade.» Rimo-nos, eu menos que eles, e José Juan Ramírez teve a ideia: «Por uma quantidade de razões que não vale a pena enumerar, deveriam criar uma fundação.»Nasceu nesse momento... Quem me conhece sabe que resisto sempre a qualquer ideia ou projecto que me pareçam excessivos e este caso não foi excepção.

Resisti quanto pude, mas sabia-me vencido de antemão.O que queríamos era que a fundação te aliviasse de trabalhos.. E dar resposta às dezenas de solicitações que nos chegam, ao mesmo tempo que pomos em marcha os projectos que vamos concebendo. Insisto: o meu desejo é que as pessoas se habituem a perguntar: o que é que vai fazer agora a Fundação?Digo-te que há muitas pessoas que, de manhã, a primeira coisa que vão ver é o que a fundação tem de novo, e mais agora, com o blogue. Dizem que essa é a forma de manter contacto contigo. Recebem diariamente cartas tuas, cartas do Nobel «bloguero». Gosto de que assim seja.Sabes o que fizeste na blogosfera? Apenas uma pequena ideia. Por mim mesmo, nunca me teria proposto essa aventura, completamente nova nos meus hábitos de trabalho. A sugestão foi tua. O curioso foi ter percebido, logo às primeiras palavras, que estava a escrever em algo surpreendente, na página infinita da Internet, como logo lhe chamei, e que essa escrita era uma maneira de comunicar diferente da que os livros proporcionam, diferente também de escrever artigos e publicá-los na imprensa.

O ser humano é realmente complicado. Tantas vezes me tinham pedido que colaborasse em jornais e revistas, o que evidentemente me seria pago, e agora estou a ocupar parte do meu tempo a escrever textos grátis. Enfim, é bom...E tudo se tornará mais visível quando se ocupar a Casa dos Bicos. Se eu sonhasse alguma vez em ter um espaço público, poderia pensar em muita coisa, mas nunca pensaria na Casa dos Bicos. Temos uma grande responsabilidade com esta sede, com a Câmara, com Lisboa. Ainda bem que somos ousados.Quando vires o mundo desde a Casa do Bicos. Tenho que confessar que gosto de pensar que, numa dessas janelas que dá para o Campo das Cebolas e para o rio, estarei daqui por poucos meses a trabalhar. Vou abrir a janela para ver o Tejo e o Campo das Cebolas. É quase outro Prémio Nobel. Houve um tempo em que o Prémio Nobel me parecia impossível. Pois a Casa dos Bicos também me deveria ter parecido impossível se alguma vez tivesse pensado nela como um destino. No Prémio Nobel, a partir de certa altura, pensei.

Na Casa dos Bicos, não.Agora, José, é curioso que, tanto o Prémio Nobel como a Casa dos Bicos, dez anos entre ambos, repercutam noutras pessoas. Escreve-se para que outros leiam. Recebeste o Prémio Nobel e desde o primeiro dia percorreste Portugal inteiro para partilhar essa alegria, e agora a Casa dos Bicos, para fazer coisas, não à maior... ...maior glória de Saramago, não.Porque podias estar muito bem com os teus livros e se querias ver o Campo das Cebolas, compravas ali um andar e vias o Campo das Cebolas. Mas estás a trabalhar para os outros, e isso deve ficar claro. Enfim, isto tudo acaba por me recordar, quando tinha 18 anos, uma frase que me ficou na memória. Conversando com os amigos, disse algo que não era para a minha idade: «O que tiver de ser meu, às mãos me há-de vir ter.» Parece uma atitude fatalista, mas não é assim: fiz o meu trabalho e continuo a fazê-lo. Mas a sensação que tenho é como se nessa altura me tivesse sido feita uma promessa e a minha vida estivesse aí para mostrar como ia sendo satisfeita.

E a Casa dos Bicos é o último acto. Nunca pensei, não fui eu quem pediu a Casa dos Bicos. Foi-nos dito, e foi um choque.Foi dito porque alguém entendeu que a ideia era viável. Se havia um espaço público que pudesse ser-nos confiado, só o seria em função das nossas propostas de trabalho, do nosso programa, dos nossos objectivos. Foi em função disso, tudo documentado, que nos entregaram a Casa dos Bicos e eu posso garantir que não se irão arrepender.Nestes meses próximos esperam-se duas notícias relacionadas com a tua obra: por um lado, o filme de Fernando Meirelles sobre «Ensaio sobre a Cegueira»… A exibição do filme já está a ser um êxito em vários países. O guião foi bem pensado, os actores e os técnicos são do melhor que poderia desejar.. Embora já tivesse visto o filme em Lisboa, numa sessão privada, estou desejoso de voltar a vê-lo na sua montagem final.

E em Novembro, em São Paulo, será apresentada a exposição «A Consistência dos Sonhos», esse percurso magnífico que a Fundação César Manrique, de Lanzarote, realizou sobre a tua vida e a tua obra e que já vimos no Palácio da Ajuda. A função da exposição ficaria incompleta se o material que a compõe não fosse levado ao Brasil. Dá-me uma enorme satisfação estar sendo um instrumento de novas aproximações dos nossos países. Lá estaremos.Podemos anunciar que no fim do périplo internacional esta exposição ficará, de forma permanente, em Lisboa? Sim, mas não na actual concepção. Na Casa dos Bicos apresentar-se-ão rotativamente diversas percepções da obra, seja através dos livros, da cronologia, de alguma efeméride... Enfim, uma rotação que poderá apreciar-se num dos andares da Casa, que os outros, como é natural, irão ter outras ocupações. Veja o vídeoENTREVISTA DE PILAR DEL RÍOFOTOGRAFIAS DE ANA BAIÃO A história de uma entrevista diferente Há um ano, Saramago disse que os jornalistas não o conheciam.

O «Expresso» desafiou-o a revelar-se. E convidou Pilar del Río para o fazer ÀS VEZES PENSO NO QUE SERIA A MINHA VIDA SEM A PILAR. E NÃO IMAGINO. OU POR OUTRA, IMAGINO: NÃO SERIA NADA BOA (COMENTÁRIO DE JOSÉ SARAMAGO INTERROMPENDO O SILÊNCIO QUANDO ESPERA POR PILAR, QUE FOI À FARMÁCIA, SENTADO NO CARRO COM AS DUAS JORNALISTAS DO EXPRESSO) A ideia do Expresso publicar uma entrevista com José Saramago vinha do ano passado, quando, em Agosto, uma equipa do jornal se deslocou a Lanzarote para fazer um trabalho centrado na mulher do escritor, Pilar del Río, por esta ter assumido a presidência da Fundação José Saramago.O projecto começou a delinear-se num almoço, a partir de uma «provocação» de Saramago: «Vocês (leia-se, os jornalistas) não me conhecem!». «Se calhar porque não se dá a conhecer…», respondeu a autora destas linhas, desafiando: «Porque não dá uma entrevista ao Expresso na qual, finalmente, se revele?».

A conversa ficou combinada para Lisboa por altura do lançamento de A Viagem do Elefante, o novo livro do escritor. Uma jornalista reunia condições exclusivas para realizar uma entrevista diferente, de excepção: Pilar del Río. O que poderia ser um impedimento passou a mais-valia. «Parece-me bem. Aceito o desafio», foi a resposta pronta da antiga colaboradora do Expresso na área da Cultura, hoje com 58 anos, carreira feita na televisão, rádio (onde colabora) e imprensa. A presença de uma equipa do jornal, para fazer a reportagem dos bastidores da entrevista, é igualmente acertada. Devido à agenda do casal, a entrevista acaba por acontecer em Lanzarote.São quase 12h30 do dia 4 de Setembro quando Pilar del Río inicia a entrevista na Biblioteca José Saramago, o pólo da fundação do escritor em Lanzarote que funciona como autêntica sala de visitas do casal. É no meio dos 15 mil livros do fundo bibliotecário do Nobel que a jornalista espanhola o vai questionar e, a espaços, enveredar pelo debate apaixonado de ideias ou pelo tom mais tranquilo de uma conversa.

Ela falará em castelhano, a língua do casal desde que se conheceu em 1986, ele em português.A hora seguinte voa até ser anunciado que Fernando Gomez Aguilera, da Fundação César Manrique, e comissário da exposição «A Consistência dos Sonhos», já chegou, como estava previsto.Pilar vai buscar bebidas e queijo e, no caminho para a cozinha, queixa-se das respostas longas do entrevistado. A hora do almoço há muito que chegou. Retomamos pelas 17h30. O casal aparece com Camões, o cão de estimação, e a cadelita amiga Boli. Os temas sucedem-se por cerca de duas horas e meia, até que Pilar anuncia: «A entrevista está feita». À beira dos 86 anos e ainda convalescente, Saramago mostrou-se em grande forma e em apenas duas sessões concretizava-se um trabalho previsto para vários dias. Para tal contribuiu o conhecimento e a cumplicidade entre ambos? Certamente, embora, na maior parte do tempo, ambos tenham mantido sem esforço os papéis de entrevistadora e entrevistado. Só em dois temas caros a Pilar o seu envolvimento veio ao de cima: os alegados lóbis que terão contribuído para o Nobel e alguma polémica pela cedência da Casa dos Bicos à Fundação José Saramago.E o casal, enquanto tal, «apareceu» na entrevista? Não podia ser evitado.

Eram Pilar e José que falavam da grave doença que o levou a ter avistamentos da morte. Ele perdeu a voz por duas vezes; ela virou as costas para esconder um rosto emocionado. Deixou-o falar até, num gesto subtil, lhe pedir para terminar. Ele tocou a mão dela e assim ficaram numa imagem que explica a dedicatória do novo livro, que o escritor nos revelou: «A Pilar, que não deixou que eu morresse».Noutro dia, faz-se o balanço de um trabalho que constituiu novidade para ambos - ela já o havia entrevistado para duas publicações em língua castelhana (em 2001 e 2007), mas esta foi a primeira entrevista para um jornal português e «ao vivo» (as anteriores foram escritas de computador para computador).Pilar está satisfeita. «Temos um documento. Nem foi uma entrevista mais fácil, nem mais difícil, foi diferente. A minha expectativa era até onde Saramago ia deixar-se ver, quantas portas ia abrir e o que ia contar».O entrevistado não poupa elogios ao profissionalismo da mulher. «Pilar leva o jornalismo na massa do sangue. Se eu não tivesse vindo, de algum modo, cortar-lhe a carreira, ela seria uma das grandes figuras do jornalismo espanhol», diz, emocionando-a.

«Foi um condensar de tantas coisas que temos dito um ao outro. Abri-me mais do que se o entrevistador fosse outro e fui tão longe quanto possível na explicação das minhas razões».Recusam a ideia «mediática da mulher que entrevista o marido» e acreditam ter conseguido fazer a entrevista «sem demasiada pieguice». Mais: Pilar garante que ele não conhecia os temas, muito menos o guião. Mostrar a entrevista antes de a publicar? «Porque não? Se tal contribuir para aclarar ideias, melhorar o português». Porque, acima de tudo, querem que seja «a melhor entrevista

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JBS