Pergunta: Escreveu uma vez no Transatlantic Review que a única razão pela qual trabalhou com jornalismo era por ser bem pago. E disse: "E quando se destroem coisas importantes, escrevendo-se sobre elas, é preciso receber um bom dinheiro por isso". Acha que escrever é uma espécie de autodestruição?
Hemingway: Não me lembro de ter escrito isso algum dia. Mas me parece idiota e violento o bastante para eu ter dito, só para não ter que ficar roendo as unhas e dar uma declaração sensata. Com toda certeza eu não acho que escrever seja uma espécie de autodestruição, se bem que o jornalismo, depois de um certo ponto, pode vir a se tornar uma autodestruição diária para um escritor sério e criativo.
Pergunta: Na sua opinião, o estímulo intelectual da companhia de outros escritores contribui de alguma forma para o escritor?
Hemingway:Sem dúvida.
Pergunta: Na Paris dos anos 20, o senhor tinha algum "sentimento de grupo" com relação aos outros estritores e artistas?
Hemingway:Não. Não existia nenhum sentimento de grupo. Sentíamos respeito uns pelos outros. Eu respeitava muitos pintores, alguns da minha idade, outros mais velhos - Gris, Picasso, Braque, Monet, ainda vivos na época e escritores: Joyce, Ezra Pound, o que havia de bom em Stein...
Pergunta: Quando está escrevendo, alguma vez já se viu influenciado pelo que estava lendo na época ?
Hemingway:Não, desde a época em que Joyce estava escrevendo Ulysses. Não foi uma influência direta. Mas naqueles dias, quando as palavras que conhecíamos nos eram interditas, e tínhamos que brigar por uma única palavra, a influência do trabalho de Joyce mudou tudo, e fez com que pudéssemos nos livrar das restrições.
Pergunta: Outros escritores lhe ensinaram alguma coisa sobre a arte de escrever? Ainda ontem o senhor estava me dizendo que Joyce, por exemplo, não suportava falar sobre o assunto.
Hemingway:Junto a pessoas de seu próprio ramo, você normalmente fala dos livros de outros escritores. Quanto melhores forem os escritores menos vão falar sobre o que eles mesmos escrevem. Joyce era um grande escritor e só explicava o que estava fazendo a imbecis. Acreditava que os outros escritores que respeitava eram capazes de entender o que ele fazia no momento em que o lessem.
Pergunta: Parece que o senhor tem evitado a companhia de outros escri tores há anos. Por quê?
Hemingway: Isso é mais complicado. Quando se escreve, quanto mais fundo se vai, mais sozinho se fica. A maioria dos antigos e melhores amigos morre. Outros se mudam.. Você não os encontra mais a não ser em raras ocasiões, mas escreve e mantém o mesmo contato de antes, como se estivessem juntos num café, como nos velhos tempos. Trocam-se cartas cômicas, às vezes descaradamente obscenas e irresponsáveis, e é quase o mesmo que conversar. Mas você fica mais sozinho, porque é assim que tem de trabalhar, e o tempo para trabalhar fica cada vez menor, e, se você desperdiça esse tempo, sente que cometeu um pecado para o qual não existe perdão.
Pergunta: Já tocou algum instrumento musical?
Hemingway: Costumava tocar violoncelo. Minha mãe me tirou da escola um ano inteiro, para que eu estudasse música e contraponto. Achava que eu tinha jeito, mas eu não tinha o menor talento. Tocávamos música de câmara alguém tocava violino; minha irmã tocava viola e minha mãe, piano. Eu tocava violoncelo pior que qualquer outra pessoa na face da Terra. E claro, naquele ano fiquei livre para fazer outras coisas também.
Pergunta:Relê os escritores de sua lista? Twain, por exemplo?
Hemingway: É preciso dar um prazo de uns dois ou três anos com Twain. Você grava muito as histórias. leio um pouco de Shakespeare todo o ano.Sempre Lear. É só ler i fico mais estimulado.
Pergunta: A leitura é, então, uma ocupação e um prazer constantes?
Hemingway:Vivo lendo livros - todos que aparecem. Faço um certo racionamento, de forma a ter sempre algum de reserva.
Pergunta: Quer dizer então que um conhecimento profundo das obras das pessoas em sua lista ajuda a preencher o "poço" de que falou há pouco? Ou foram uma ajuda consciente no desenvolvimento das técnicas de redação?
Hemingway:Fizeram parte do aprender a ver, a ouvir, a pensar, a sentir e a não sentir, e a escrever. O poço está onde está seu gás. Ninguém sabe do que ele é feito, muito menos você. Você já sabe se está com ele ou não, se vai ter que esperar até que ele venha novamente.
Pergunta: O senhor admitiria a existência de símbolos em seus romances?
Hemingway:Acredito que existam símbolos, já que os críticos continuam a encontrá-los. Se não se importa, não gosto de falar sobre símbolos, e nem que me façam perguntas sobre isso. Já é bastante difícil escrever livros e contos, e ainda por cima lhe pedem para ficar explicando o sentido. Isso também acaba tirando o emprego dos explicadores. Se cinco ou seis, ou mais explicadores profissionais podem dar conta da coisa, por que eu iria me meter? Leia tudo que escrevo só pelo prazer da leitura. Qualquer outra coisa que venha a encontrar será a medida daquilo que você trouxe à leitura.
Pergunta: Essas perguntas que abordam a criação artística são realmente uma chateação.
Hemingway:Uma pergunta inteligente não deve ser nem um prazer nem uma chateação. Mas ainda acho que é muito desagradável para o escritor falar sobre como ele escreve. Escreve para ser lido com os olhos e nenhuma explicação ou dissertação deveria ser necessária. Pode ter certeza que existe muito mais no que se escreve do que aquilo que se lê numa primeira leitura e, por ser assim, não é função do escritor explicar o que escreve ou organizar excursões, como um guia turístico, através da região mais difícil de sua obra.
Pergunta:Poderia dizer quanto de esforço consciente de elaboração entrou no desenvolvimento do seu estilo pessoal?
Hemingway: Essa é uma pergunta cansativa e exige muito tempo para ser respondida. Se você passasse dois dias respondendo, ficaria tão consciente de si mesmo que não conseguiria mais escrever. Eu diria que aquilo que os amadores chamam de estilo geralmente é apenas a inevitável falta de jeito da piimeira tentativa de se fazer algo que até então nunca havia sido feitô: Quase nenhum dos novos clássicos se parece com os antigos. No início, as pessoas só consegem ver a falta de jeito. Depois isso não é mais tão perceptível. Quando se revela uma falta de jeito ímpar, as pessoas pensam que isso é estilo e muitas passam a copiar. O que é Jamentável.
Pergunta: Como se apresenta em sua mente a concepção de um conto? O tema, o enredo, algum personagem muda conforme vai escrevendo?
Hemingway: As vezes sei a história. As vezes vou compondo conforme escrevo e nem tenho idéia de como vai ficar. Tudo muda conforme o desenroIar. É isso que faz o movimento, que faz a história. As vezes o movimento é tão lento que parece que não há movimento algum. Mas sempre há mudança e sempre há movimento.
Pergunta: É assim também com o romance, ou o senhor elabora todo um plano antes de começar e segue rigorosamente esse plano?
Hemingway:For whom the bell tolls foi um problema que tive de enfrentar diariamente. Em princípio sabia o que ia acontecer. Mas inventava o que acontecia a cada dia.
Pergunta: The green hills of Africa, To have and have not e Across the river and into the trees começaram todos como contos e acabaram se transformando em romances? Se foi esse o caso, essas duas formas são tão semelhantes que o escritor pode passar de uma para a outra sem ter que rever por completo o tratamento dado?
Hemingway:Não, isso não é verdade. The green hills of Africa não é um romance, foi uma tentativa de escrever um livro absolutamente fiel à verdade, para ver se o contorno de uma região e o esquema de um mês de ação poderiam, se apresentados de maneira verídica, se equiparar a uma obra fictícia. . Depois de tê-lo escrito, escrevi dois contos, "The snows of Killimanjaro" e "The short happy life of Francis Macomber". Esses contos, inventei com base no conhecimento e na experiência que havia adquirido naquele mesmo mês de longas caçadas do qual tentei dar um relato fiel em The green hills. To have and have not e Across the river and into the trees começaram, os dois, como contos.
Pergunta: Acha fácil passar de um projeto literário para outro, ou o senhor segue direto num só projeto, para acabar o que começou?
Hemingway: O fato de estar interrompendo um trabalho sério para responder a essas perguntas prova que sou tão idiota que merecia receber um castigo terrível. E vou receber. Não se preocupe.
Pergunta: Vê-se competindo com outros escritores?
Hemingway:Nunca. Costumava tentar escrever melhor do que certos escritores já falecidos, aqueles que julgava terem realmente valor. Já há um bom tempo venho apenas tentando fazer o melhor que consigo. As vezes tenho sorte e escrevo melhor do que posso.
Pergunta: Acha que a força de um escritor diminui conforme ele envelhece? Em The green hills of Africa o senhor diz que os escritores norte-americanos com uma certa idade se transformam em "vovozinhas".
Hemingway:Não sei de nada disso. Pessoas que sabem o que fazem deveriam permanecer em atividade desde que suas cabeças continuassem em atividade. Nesse livro a que se referiu, se você olhar direito, vai ver que eu estava falando horrores sobre a literatura norte-americana com um austríaco completamente sem humor, que estava me forçando a conversar, quando o que eu queria era fazer outra coisa. Fiz um relato exato dessa conversa. Não para fazer pronunciamentos imorredouros. Uma boa porcentagem das opiniões é bem razoável.
Pergunta: Até agora não discutimos personagens. Os personagens de suas obras são, sem exceção, tirados da vida real?
Hemingway:Claro que não. Alguns vêm da vida real. A maioria você inventa a partir do conhecimento, da compreensão e da experiência com pessoas.
Pergunta: Poderia dizer alguma coisa sobre o processo de transformar um personagem real num personagem fictício?
Hemingway: Se fosse explicar como isso às vezes é feito, ia parecer um manual para advogados de acusação.
Pergunta:Faz alguma distinção - como faz E. M. Forster - entre personagens "planos" e "redondos"?
Hemingway: Se você descreve alguém, é plano, é como uma fotografia, e, no meu ponto de vista, uma falha. Se você cria esse alguém a partir daquilo que você conhece, ele terá todas as dimensões.
Pergunta:Dos seus personagens, quais são os que vê com um carinho especial?
Hemingway:Isso daria uma lista enorme.
Pergunta: Então gosta de reler seus próprios livros -sem sentir que existem coisas que gostaria de mudar?
Hemingway:Leio, às vezes, para me sentir incentivado quando está difícil escrever; então me lembro que sempre foi difícil e de como às vezes era quase impossível.
Pergunta: Como dá nome aos personagens?
Hemingway: O melhor que posso.
Pergunta: Os títulos lhe ocorrem enquanto está no processo de criação da história ?
Hemingway:Não. Faço uma relação de títulos depois que termino o conto ou o livro - às vezes chega a uns cem. Então começo a eliminar alguns, às vezes todos.
Pergunta:Faz isso até mesmo com uma história cujo título foi sugerido pelo próprio texto -"Hills like white elephants", por exemplo?
Hemingway:É. O título vem depois. Conheci uma garota em Prunier, onde eu tinha ido para comer ostras antes do almoço. Fiquei sabendo que ela havia abortado. Me aproximei e conversamos, não falamos sobre o aborto, mas no caminho de volta para casa fui pensando na história, não almocei, e passei a tarde escrevendo o conto.
Pergunta:ArchibÍlld MacLeish falou de um método de transmitir experiência que, segundo ele, o senhor desenvolveu quando cobria jogos de beisebol nos dias do Kansas City Star. O método consistia simplesmente na transmissão da experiência através de pequenos detalhes que, relatados tintim por tintim, acabavam dando a idéia do todo, fazendo com que o leitor ficasse consciente daquilo que ele já sabia, mas em seu subconsciente...
Hemingway:Essa historinha é apócrifa. Nunca cobri beisebol para O Star. O que Archie tentava se lembrar era de como eu estava tentando aprender, em Chicago, por volta de 1920, e de como eu procurava pelas coisas despercebidas, que revelavam a emoção, coisas como o jeito pelo qual o jogador de beisebol jogava a luva para trás sem olhar onde ela havia caído, o chiado da sola do lutador sobre a lona encerada, a tonalidade cinzenta da pele de Jack Blackburn assim que ele saía de uma luta, e outras coisas que eu anotava, como um pintor faz esboços. Você via a cor estranha de Blackbum, as cicatrizes de navalha e o jeito como ele acertava um homem, antes de saber a sua história. Eram essas as coisas que lhe davam emoção antes que você soubesse da história.
Pergunta: Já descreveu algum tipo de situação do qual não tivesse nenhum conhecimento pessoal?
Hemingway:Essa é uma pergunta muito estranha. Por conhecimento pessoal você quer dizer experiência? Nesse caso, a resposta é sim. Um escritor, se tem algum valor, não descreve. Ele inventa ou cria a partir do conhecimento pessoal e impessoal, e às vezes parece ter um conhecimento inexplicado que poderia vir da experiência familiar e racial já esquecida. Quem ensina o pombocorreio a voar como ele voa; de onde o touro tira a sua bravura, ou o cão de caça o seu faro? Isso é uma elaboração, ou uma condensação, daquilo que conversamos em Madri, quando a minha cabeça não estava muito confiável.
Pergunta: Poderia dizer até que ponto, na sua opinião, o escritor deve se preocupar com os problemas sócio-políticos de sua época ?
Hemingway:Cada um tem sua própria consciência, e não deveriam existir regras sobre como a consciência deve funcionar. Tudo que você pode ter cer teza a respeito de um escritor com preocupações políticas é que, se a obra dele permanecer viva, você vai ter que ignorar a política quando o ler. Muitos dos chamados escritores engajados mudam de ideologia a toda hora. Isso é muito estimulante para eles e para suas resenhas político-literárias. As vezes têm até que reescrever seus pontos de vista e na maior pressa. Talvez dê para se respeitar esse tipo de atitude como uma forma de se buscar a felicidade.
Pergunta:Existiria alguma intenção didática em sua obra?
Hemingway: Didática é palavra que tem sido usada erroneamente e se estragou. Death in the afternoon é um livro instrutivo.
Pergunta: Tem-se falado que os escritores trabalham apenas com uma ou duas idéias no decorrer de suas obras. Diria que a sua obra reflete uma ou duas idéias?
Hemingway: Quem disse isso? Parece simples demais. O homem que disse isso provavelmente tinha só uma ou duas idéias.
Pergunta: Bem, talvez fosse melhor colocar as coisas da seguinte maneira: Graham Greene disse que existe uma paixão predominante, que confere a um conjunto de obras a unidade de um sistema. Se não me engano, o senhor mesmo disse que grandes textos nascem de um senso de injustiça. Considera isso um fator importante, que o romancista seja dominado dessa maneira por tal senso de injustiça?
Hemingway: Graham Greene tem uma facilidade para fazer declarações que eu não tenho de modo algum. Para mim seria impossível tecer generaliza.; ções sobre um conjunto de obras, um bando de perdizes ou um pelotão de gansos. Mesmo assim, vou arriscar uma generalização. Um escritor sem senso de justiça e injustiça ganharia mais editando o anuário de uma escola para crianças excepcionais do que escrevendo romances. Outra generalização. Viu só? Até que elas não são tão difíceis, quando são óbvias o suficiente. O dom mais importante para um bom escritor é um detector interno de baboseiras à prova de choque. Esse é o radar do escritor e todos os grandes escritores ti veram um.
Pergunta: Para encerrar, uma pergunta essencial: como escritor criativo que é, qual considera ser a função da sua arte? Por que a representação do fato, em vez do fato em si?
Hemingway:Por que ficar quebrando a cabeça com isso? De coisas que aconteceram, de coisas que estão acontecendo, e de todas as coisas que você conhece e de todas aquelas que não pode conhecer, você cria algo com a jmaginação, algo que não é uma representação, mas sim uma coisa inteiramente nova, mais real do que qualquer coisa viva e real, e você dá vida a essa coisa, e se fizer isso bem o bastante, você lhe confere imortalidade? por isso que se escreve, não por qualquer outra razão que possa vir a conhecer. Ma!' e todas aquelas razões que ninguém conhece?
5 DE OUTUBRO DE 1910
Há 1 ano
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