domingo, 28 de junho de 2009

À CONVERSA COM







PROF. DOUTOR VILHENA MESQUITA.

Esta entrevista foi-me dada pelo Prof. Doutor Vilhena Mesquita, por sugestão da velha glória e grande atleta olhanense, senhor Manuel Poeira e destinada ao Jornal "O OLHANENSE", para onde, durante um ano escrevi crónicas, que figuravam na página dois, sob o título "EU GOSTO DE OLHÃO" .

Não sei porque carga de água as minhas crónicas deixaram de ser publicadas sem me ter sido dada qualquer explicação. Mas não há problema nenhum.

Esta entrevista do Dr. VM, foi enviada duas vezes para o jornal "O OLHANENSE" cuja recepção não me foi confirmada. Contactado o senhor LEAL BRANCO do jornal sobre o assunto, disse-me não saber de nada.

Dado o elevado grau de intelectualidade contida na entrevista, reconhecido por pessoas de idónea craveira intelectual, peço licença ao Dr, Vilhena Mesquita, ao Manuel Poeira e ao jornal "O OLHANENSE, para que a dita aqui seja publicada.

À conversa com o Prof. VILHENA MESQUITA.

José Carlos Vilhena Mesquita, historiador, ensaísta e escritor, é desde 1983, professor na Faculdade de Economia da Universidade do Algarve. Embora algarvio de coração e alma, nasceu em Vila Nova de Famalicão, onde realizou a sua formação escolar rumando depois para a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tendo aí concluído o curso de História.

Iniciou a sua vida profissional em 1978, como docente no ensino secundário, e, em 1983, tornou-se professor universitário. Em 1997 defendeu a sua dissertação de doutoramento sendo aprovado com “Distinção e Louvor”. Em 1994 foi galardoado com o 2.º Prémio Especial Algarve de Comunicação Social, e em 1995 com o 1.º Prémio Samuel Gacon, no âmbito de comunicação social algarvia. Fundou, em 1998, a Associação dos Jornalistas e Escritores do Algarve (AJEA), da qual é presidente. Em 1998 fundou e dirigiu o «Jornal Escrito», órgão noticioso da AJEA. No ano seguinte fundou a revista «STILUS», da qual é director. Em 2002 fundou e dirigiu o boletim de divulgação da moderna poesia algarvia, «Nó Vital». Publicou quase uma vintena obras, de entre as quais destacamos A Importância do Brasil na Economia Portuguesa do Século XVIII, História da Imprensa do Algarve, História do Teatro Lethes, O Algarve nos Primórdios da Academia Real da História Portuguesa, O Marquês de Pombal e o Algarve, Estudos de História do Algarve, etc. Participou em vários Congressos e proferiu dezenas de conferências.

Na sua juventude foi camisa dez no F. C. de Famalicão... é com este homem do Norte que falamos de futebol entre outros temas, de que damos conta a seguir.

1 - BLOGUE BRAÇOSAOALTO/BBA) – A sua condição de Professor, Investigador e Pensador, exige-lhe um comportamento ético. Concorda?

Prof. Vilhena Mesquita (VM) – Toda a minha vida tem sido conduzida sob os mais inabaláveis princípios éticos, por isso fiz da moral e da honra o meu pendão de batalha. Tanto na vida profissional como na vida social nunca tergiversei em qualquer situação que pudesse fazer perigar a minha integridade ética, a minha liberdade ou os meus direitos cívicos. Também é certo que tento sempre cumprir as minhas obrigações com a maior elevação, seriedade e competência. E quem me conhece sabe que sou homem de um só rosto.

2 - (BBA) – Albert Camus estava convencido que era possível a construção da «cité universelle des hommes libres et fraternels» («cidade universal dos homens livres e fraternos»). Qual a sua posição nesta matéria?

(VM) – Esse desiderato de Camus fez parte das últimas Utopias do séc. XX. O sonho da “Cidade de Deus”, de Santo Agostinho, modelo da cidade perfeita, onde todos os homens seriam livres e irmãos, serviu de inspiração às grandes utopias libertárias que animaram a humanidade durante séculos. O Camus, além de filósofo e escritor, foi também um lutador pela liberdade que pertenceu à Résistance Française, opondo-se com todas as suas forças ao domínio nazi. Ao lado de Sartre e de Simone Beauvoir sustentou o primado da liberdade como raiz e esteio da humanidade. Julgo que hoje as utopias morreram, tal como as ideologias, e temo que ninguém acredite em sonhos libertadores. Porém, eu ainda acredito... talvez por isso nunca me tenham levado a sério.

3 - (BBA) – O futebol, em sua opinião, pode contribuir para a formação do homem, tanto do praticante como do associado ou simpatizante?

(VM) – Claro, o futebol é a conjugação das aptidões individuais em prol de objectivos comuns. Por isso fortalece os laços de solidariedade entre os participantes, como aliás acontece na maioria dos desportos colectivos. Os jogadores aprendem a cooperar e a desempenhar funções específicas em benefício de interesses comuns. Repare-se que o individualismo, esse cancro social dos tempos modernos, é altamente combatido no futebol. Os mais criativos depressa percebem que não podem subsistir no jogo sem a entreajuda dos colegas. E aquilo a que no futebol se chama “táctica” não é mais do que a distribuição estratégica das posições de apoio, ou seja, sempre que um jogador tem a bola dois colegas deverão aproximar-se no sentido de lhe proporcionar linhas de passe, enquanto outros dois se afastam para espaços livres procurando criar vias de penetração, ou simplesmente manobras de diversão tendentes a dispersar a atenção dos defesas. O jogo desenrola-se em linhas paralelas, que avançam ou recuam como um harmónio, formando espaços de movimentação entre dez a vinte metros que, por sua vez, se repartem por “círculos de influência” cujo diâmetro pode ter no máximo quinze metros. É a isto que chamam a dinâmica do jogo. Os jogadores mais inteligentes percepcionam melhor os espaços e por isso conseguem encurtá-los à penetração dos adversários. Por isso é que a fase mais importante do jogo é a contra-ofensiva, sendo essa a altura certa para marcar. Enfim, este assunto levar-nos-ia para uma reflexão longa e fastidiosa.

4 - (BBA) – Ainda vai ao futebol? É simpatizante da modalidade? Na sua opinião há correcções a fazer?

(VM) – Desliguei-me radicalmente do futebol há mais de trinta anos. Quando vim para o Algarve perdi as minhas referências. Porém, continuo a interessar-me pelo futebol que é cada vez mais um desporto cientificamente planificado, nos seus múltiplos aspectos, não só técnico-tácticos como ainda na programação do treino, na invenção de objectivos que suscitem a motivação anímica dos jogadores, no fortalecimento psíquico dos atletas, na recuperação física após competição e sobretudo na formação intuitiva das mecânicas do jogo, que o vulgo designa por “automatismos”. Quanto às correcções do jogo não faria nenhuma. Alteraria porém as substituições, que em vez de três passaria para cinco, permitindo assim ao treinador modificar o sistema e a dinâmica do jogo.

5 - (BBA) – Agrada-lhe a ideia de um intelectual se pronunciar sobre futebol?

(VM) – Claro que sim. O sucesso do Mourinho não é mais do que a intelectualização do futebol. Trata-se duma indústria que movimenta milhões de euros, não podendo por isso ser votada aos circunstancialismos daquilo a que chamam a “sorte do jogo”. O sucesso do futebol traduz-se por planificação, organização e disciplina, sendo a inteligência dos mais vocacionados a chave de ouro para o sucesso. A intelectualização do futebol é uma verdade incontornável num futuro cada vez mais próximo.

6 - (BBA) – Jogou com o nº 10 no F.C. de Famalicão. Gostou de jogar nessa posição? Como é jogar aí? Acha que tinha jeito? Qual era a sua principal característica?

(VM) – Sim, é uma das posições mais importantes em campo. Exige do atleta grande frescura física e muita inteligência. Porém, depende muito do sistema de jogo. Funciona melhor num 4-4-2 do que num clássico 4-3-3. Além disso tem de usar os dois pés, ter boa visão de jogo, isto é, antecipar uma opção de construção antes de possuir a bola, ter uma inteligência relampejante para abrir espaços e rasgar as estruturas defensivas. Para atingir a perfeição o nº 10 deve possuir força e colocação de remate, não só para bater as bolas paradas como ainda para visar a baliza, pois que pela sua versatilidade tem mais facilidade de se aproximar da linha limite da área.
Faltou-me a potência do remate e alguns centímetros de estatura para poder singrar. Mas nessa altura não podíamos procurar o nosso futuro, porque o chamado “direito de opção” dos clubes escravizava os atletas e desumanizava o futebol. O «25 de Abril» trouxe também a liberdade para o futebol. Abandonei pouco depois de entrar para a Faculdade. Se fosse hoje teria conseguido conciliar os estudos com o futebol, tal como fez agora o Nuno Piloto da Académica.

7 - (BBA) – Sabe que no clube da sua terra jogou um dos melhores jogadores do Algarve de nome Manuel Poeira? Viu-o jogar? O que é achou da sua postura em campo?

(VM) – Sei muito bem, até porque foi um dos meus ídolos de infância. Era um jogador à imagem do Futre, com o qual se parecia no físico, no dribling em progressão e na velocidade de ponta. Jogava nas alas, esquerda ou direita, mas sempre de forma muito rápida e imprevisível, ora progredindo em desconcertantes diagonais para o eixo da área, ora avançando para cruzar próximo da linha de fundo para a retaguarda da defesa. Era um atleta longilíneo, com potente remate e grande poder de impulsão para cabecear na área. Fazia golos com facilidade, mas a sua missão principal era assistir os colegas a concretizarem no coração da área, nomeadamente o Aurélio, o Miranda, e outros de que já nem me lembro o nome. O Poeira era um jogador completo, e se fosse hoje seria um verdadeiro craque, porque não conheço muitos com as suas características. Além disso era rápido e inteligente no trato da bola e na criação de espaços.

8 - (BBA) – Sobre esse jogador, gostava que comentasse outros aspectos que lhe ocorram, tanto no plano desportivo com no plano humano, por exemplo...

(VM – O meu pai era director do F. C. de Famalicão na altura em que contrataram o Manuel Poeira, e nessa semana estávamos de férias na praia do Mindelo. Lembro-me de ter falado no assunto com grande expectativa. Acho que o Poeira tinha ido para o Norte, creio que para cumprir o serviço militar, e daí a possibilidade de o levar para o clube, à imagem do que acontecera com vários outros atletas vindos de clubes do sul. Nessa altura os campos eram pelados, convidativos ao futebol em força, ao choque e ao jogo directo, pelo que o estilo hábil e versátil do Poeira deu logo nas vistas. No confronto um contra um raramente saía desfeiteado, quer nas alas quer no miolo do terreno. Tinha um estilo de jogo alegre, criativo e artístico, com dribles rápidos e em progressão, tentando chegar à linha da área no mais curto espaço de tempo. Nessa altura não tive qualquer contacto humano para poder avaliar o seu carácter, mas pelo que pude observar anos mais tarde, o Manuel Poeira deixou no futebol uma marca indelével da sua honradez e inabalável firmeza de carácter. Conheço o seu trajecto de vida e só por mero acaso é que soube recentemente que vive em Olhão. Acima de tudo, pelas posições assumidas ao longo da sua vida, o Manuel Poeira provou ser um homem honesto, íntegro e incorruptível. Isso me basta para continuar a admirá-lo.

9 - (BBA) – Viu o jogo Chelsea/Barcelona onde o Chelsea foi nitidamente prejudicado. Acha que isso seria possível com o árbitro Manuel Poeira?

(VM) – Vi, porque não perco um jogo do Barcelona. De facto a arbitragem beneficiou a equipa catalã. Não creio que o juiz tivesse instruções superiores para afastar os ingleses, embora o Abramovitch seja malquisto nas instâncias dirigentes da UEFA, onde o Platini tem vindo a desenvolver uma inadmissível política de favoritismos. O Manuel Poeira, quando foi árbitro, lutou contra os Platinis do nosso futebol, e chegou mesmo a denunciar a podridão que então se vivia no tráfico de influências, nomeadamente nas classificações dos árbitros, que favoreciam os mais “flexíveis”. Era, e é, por isso que só aos mais “predestinados” se atribuíam as insígnias da FIFA. O Poeira, como era um árbitro honesto e incorruptível não chegou aos lugares de topo a que tinha direito. Por isso, se fosse ele a arbitrar o Chelsea/Barcelona o resultado do jogo teria sido logicamente o da verdade desportiva. Note que os homens que falam a verdade ou que pugnam pela veracidade dos factos são hoje os mais ignorados, os mais espezinhados e até mesmo os mais vilipendiados, devido à perseguição que lhes movem os corruptos. Quem é que hoje fala do Manuel Poeira? Quem é que se lembra dele? Mas se tivesse feito os “favores” que outros fizeram estaria hoje a trabalhar como comentador da rádio ou da televisão, senão mesmo a dirigir a arbitragem na Liga ou na Federação...

10 - (BBA) – O que se lhe oferece dizer sobre a falta de respeito pela competição.

(VM) – Não creio que se trate de falta de respeito, mas antes da mudança de paradigma, pois que no período anterior ao «25 de Abril» o futebol, como aliás tudo o resto, era dominado pelo centro, isto é, por Lisboa, sem qualquer respeito pelo trabalho que se desenvolvia na periferia, isto é, no resto do país, a que os lisboetas chamam ainda hoje a “província”. O paradigma actual é completamente diferente, pautado pelos valores da democracia e pelo respeito nas iniciativas locais, razão pela qual despontaram novos valores e diferentes manifestações de sucesso, não só no desporto como também no municipalismo, na política, na economia e sobretudo no associativismo. O que acontece é que hoje os clubes do centro perderam protagonismo para os clubes da periferia, de tal forma que Benfica e Sporting perdem mais vezes, por vezes até demasiadas, razão pela qual procuram desvalorizar o sucesso daqueles que não costumavam ganhar. Para depreciarem o sucesso alheio, sugerem a corrupção da arbitragem...

11 - (BBA) – Estudou a resistência Miguelista no Algarve. Miguelismo, o que é? Um movimento social? Uma ideologia? Uma prática de resistência ao Liberalismo?...

(VM) – O Miguelismo é um conceito político que serve para designar a resistência do partido absolutista face à emergência do liberalismo. No fundo constituiu uma espécie de contracorrente perante a incontornável implantação do sistema representativo e do regime parlamentar-constitucional, cuja ideologia liberal, na maioria dos seus valores, direitos e garantias, ainda se mantém viva e de pé. O liberalismo foi a legítima correia de transmissão dos supremos ideais da Revolução Francesa, permitindo que de forma pacífica se pudesse implantar a Democracia.
O miguelismo tomou a designação do seu líder e principal mentor, o infante D. Miguel, que de forma ilícita e atrabiliária tomou o poder e se fez rei em 1828, abrindo caminho ao retorno do absolutismo em Portugal, revolucionariamente estabelecido em 24 de Agosto de 1820 na cidade do Porto. O miguelismo nunca foi uma ideologia, mas antes uma forma de sobrevivência do passado. Os homens nascem livres e iguais e os seus direitos não podem ser alienados, essa é a essência política do Liberalismo. Por isso é que o Porto foi, e continua a ser, a cidade da liberdade. Percebe agora a razão dos seus sucessos no mundo do futebol?

12 - (BBA) – O Miguelismo foi Contra-Revolução ou Anti- Revolução?

(VM) – Foi as duas coisas numa só. No fundo o miguelismo representava o passado e a sua necessidade de sobrevivência contra os ventos de mudança apregoados desde 1789 com a Revolução Francesa. Constituiu o último bastião da monarquia antiga que no Algarve teve na figura do Remexido o seu último defensor. Curiosamente o obsoleto modelo da velha monarquia voltaria a ser lembrado por António Sardinha com um movimento nacionalista designado por «Integralismo Lusitano», ao qual pertenceram também vários algarvios. Quando Salazar, nos anos trinta, se transformou no Chefe da nação, extinguiu o sonho absolutista dos monárquicos.

13 - (BBA) – Miguel Veiga, advogado portuense e escritor afirmou: «O tempo conta muito e não conta nada». Como homem do Norte, concorda?

(VM) – Para mim o tempo é a dimensão essencial da vida. O tempo é um referencial sem o qual não seremos capazes de enquadrar o presente, em contraponto ao passado e na perspectivação do futuro. A percepção do tempo e a sua valorização particular é a chave para compreender o pensamento de Miguel Veiga, por quem tenho aliás uma especial admiração, quer humana quer intelectual. Ele representa plenamente o cidadão portuense e, de certa maneira, encarna o espírito do homem do Norte. Lembro-me bem da sua contagiante juventude, da sua euforia política e do seu aspecto de galante uomo, sempre rodeado de gente jovem e intelectualmente interessante. Foi pela mão dele que me filiei, em Outubro de 1974, no antigo PPD. Anos depois perdi todas as ilusões... A partidarite destruiu o espírito democrático. O tempo que então contava de forma tão premente já hoje não conta para nada. O Miguel Veiga, afinal, tem toda a razão...

Texto de
JBS

1 comentário:

  1. jbritosousa@gmail.com2 de julho de 2009 às 15:13

    Caro João Brito de Sousa

    Esta é, sem dúvida, uma bela entrevista. A arte de fazer perguntas é algo que - penso - se perdeu. Pelas pressões dos órgãos de comunicação social aos seus novos e recém chegados jornalistas; pela falta de interesse na pesquisa que se denota pela superficialidade e rapidez das entrevistas; pela falta de inteligência e perspicácia (coisa que se trabalha e se desenvolve, não fosse ela mero instrumento ao serviço do Homem).

    Como tal, e também como leiga (especialmente no que toca a futebol) posso afirmar que talvez me começasse a interessar se todas as entrevistas relativas (também) a este tema fossem tão cerebrais e inteligentes.

    Como filha e bisneta de jornalistas, sei mais ou menos do que falo quando o elogio neste campo. A chamada «velha escola», essa também tentei copiar quando, ao estagiar num órgão de comunicação social, aparecia com calhamaços retirados dos arquivos e colocava na minha secretária, esperando não me colocar numa posição de completa ignorância à frente do meu interlocutor. «Graxista» é o termo que se usa, nos dias de hoje , a quem está interessado em saber um pouco mais. A esses, que fiquem com as suas elações fáceis; é sempre um prazer ler uma boa entrevista como esta.

    Os meus cumprimentos

    Ana Lemos
    Coordenadora editorial

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