sexta-feira, 5 de novembro de 2010

CONVERSAS EM FAMÍLIA

COVERSAS EM FAMÍLIA
António Lobo Antunes


Acabei agora mesmo o segundo borrão do penúltimo capítulo do livro que estou a escrever. Se as coisas correrem normalmente em outubro ficará completo. E depois, claro, falta fazer tudo. Passei o verão inteiro nisto, quase não saí da mesa e sinto-me cansado e tonto. Ando com ele, a mata-cavalos, desde o dia 2 de Março, sem contar os quatro ou cinco meses anteriores de espera, anotações ocasionais, esboços de uma linha em que gastava horas, como gastei horas, de cotovelos no tampo e mãos nas bochechas, sem pensar, a esvaziar-me para o receber. A minha maneira de trabalhar mudou muito ao longo dos anos. Não faço um plano, começo praticamente sem nada, tacteio, às cegas, num nevoeiro interior, quando julgo haver encontrado uma direcção o livro muda, há dias em que consigo meia dúzia de linhas, dias em que consigo meia página, aí a partir da primeira metade as palavras começam a andar mais depressa e eu atrás delas, com a sensação de pegar na ponta da trela de um cão mais forte do que eu, que não cessa de puxar-me e me desequilibrar. Não entendo peva do mistério da criação, ignoro em absoluto de onde o material me vem. O meu problema, ao ler as primeiras versões, é tentar dar-me conta das possibilidades internas do texto e se vale a pena estruturá-lo
(tentar estruturá-lo)
ou não. Nunca tenho a certeza, vou progredindo através de versões sucessivas, parece-me ser água entornada buscando o seu caminho numa frincha do soalho. Vejo os livros libertos de mim, com uma lógica interna que é apenas sua, possuindo uma temperatura e uma densidade que escapam aos meus mecanismos lógicos, aos meus desejos, à minha vontade. Afigura-se-me óbvio que não são meus e, para ser inteiramente honesto, deviam ser publicados sem nome de autor. E depois o medo de rapar o fundo ao tacho, de a fonte ter secado, de não haver mais nada em mim e a minha vida ficar desprovida de nexo. O que faria eu se não escrevesse? Gostei de ser médico, há alturas em que a Medicina me dá saudade mas julgo que seria extremamente difícil voltar a confrontar-me com o sofrimento alheio e somá-lo ao que trago. De cada vez que vou a um hospital comovo-me, as salas de espera das consultas doem-me, as enfermarias doem-me, a minha incompreensão perante a morte dói-me. Ninguém foi feito para morrer e vi morrer bastante gente. Demasiada gente. Do António, daqui a uns tempos, ficará uma casa de palavras, sem a minha cara lá dentro. Resta-me esperar que seja habitável para os que entrem. A gente pensa que escreve para a eternidade mas pouquíssimas obras sobrevivem aos seus supostos autores. Por exemplo, de milhares de escritores franceses do século XX quantos resistem ainda? Dois: Céline e Proust. Tudo o mais desapareceu ou está desaparecendo inelutavelmente. Por exemplo, trezentos e tal anos após a morte de Shakespeare, quantos dramaturgos continuam a ser representados? Ibsen, Strindberg, Checov e é quase tudo. Dos americanos do mesmo século XX apenas Tennessee Williams resiste. As dúzias e dúzias de outros, alguns tão renomados (Arthur Miller, Thornton Wilder, Lillian Hellman, Saroyan, Albee, etc.) não cessam de desbotar-se a caminho de uma extinção inevitável. A mesma coisa com a Poesia, o Romance, o Ensaio, para falar nessas divisões absurdas. O grande crítico T. S. Eliot desapareceu, o grande poeta T. S. Eliot esfarela-se a olhos vistos. O tempo elimina quase tudo, fica uma areiazinha de frases. Se calhar de Chesterton e Bernard Shaw sobrará apenas um
Shaw
- Olhando para si até parece que há fome em Londres
ao que Shaw respondeu
- E olhando para si até parece que foi você que a causou.
No outro dia pus-me a olhar os livros na estante do meu pai: dúzias de nomes esquecidos. Do seu querido Oscar Wilde talvez dure uma ou outra piada, como resposta, à saída do clube, a um chato que lhe perguntava para que lado ia:
- Para o outro
respondeu Wilde que, moribundo, informou os amigos
- Entre mim e este papel de parede há uma luta terrível: um de nós vai morrer
e tenho pena, porque foi um dos primeiros escritores que amei. Tive aqui um francês que anda às voltas com uma obra acerca de mim: a cada autor que eu citava a quase invariável resposta era
- Mas já ninguém o lê
e citava autores de que gosto, que foram ou continuam a ser importantes para o meu critério, ele a insistir
- Mas já ninguém o lê
e eu tristíssimo, porque esta segunda morte, a daquilo que dedicaram a vida, é bem mais horrível que a primeira. Autores de mão segura, não borra-botas, e aí a gente procura-lhes os livros e, desalentadamente, compreende. A imortalidade, em Arte, é difícil de prever. Régio e Nemésio nasceram em 1901, há cinquenta anos Régio era imensamente popular, Nemésio conhecido pelas suas conversas na televisão. Quem imaginava, na altura, que a poesia de Régio ia sumir-se num rufo e a de Nemésio se mantém sem uma prega, e cresce? Eu penso: João Cabral de Melo Neto vai permanecer. E a seguir penso: quem sabe se não estou enganado? Os critérios de avaliação serão completamente diversos, os motivos que levam as pessoas a aderir a uma obra também, o movimento do gosto incessante. Bach levou cento e cinquenta anos esquecido até ser adoptado pelos românticos. Mas será isto importante, será isto realmente importante? Até que ponto todos os livros, de todos os autores, não formam um único, imenso livro, que principiou a ser escrito muito antes de nós e prosseguirá sem fim, interminável? Perguntas, perguntas. No fundo não me interessam muito: o que eu desejaria era deixar, mais ou menos acabada, a minha casa de palavras, por definição para sempre incompleta. E que o leitor se sentisse justificado e feliz lá dentro, rodeado de vozes que breve diálogo entre ambos, quando o enorme e gordíssimo Chesterton disse ao magro
Shaw
- Olhando para si até parece que há fome em Londres
ao que Shaw respondeu
- E olhando para si até parece que foi você que a causou.
No outro dia pus-me a olhar os livros na estante do meu pai: dúzias de nomes esquecidos. Do seu querido Oscar Wilde talvez dure uma ou outra piada, como resposta, à saída do clube, a um chato que lhe perguntava para que lado ia:
- Para o outro
respondeu Wilde que, moribundo, informou os amigos
- Entre mim e este papel de parede há uma luta terrível: um de nós vai morrer
e tenho pena, porque foi um dos primeiros escritores que amei. Tive aqui um francês que anda às voltas com uma obra acerca de mim: a cada autor que eu citava a quase invariável resposta era
- Mas já ninguém o lê
e citava autores de que gosto, que foram ou continuam a ser importantes para o meu critério, ele a insistir
- Mas já ninguém o lê
e eu tristíssimo, porque esta segunda morte, a daquilo que dedicaram a vida, é bem mais horrível que a primeira. Autores de mão segura, não borra-botas, e aí a gente procura-lhes os livros e, desalentadamente, compreende. A imortalidade, em Arte, é difícil de prever. Régio e Nemésio nasceram em 1901, há cinquenta anos Régio era imensamente popular, Nemésio conhecido pelas suas conversas na televisão. Quem imaginava, na altura, que a poesia de Régio ia sumir-se num rufo e a de Nemésio se mantém sem uma prega, e cresce? Eu penso: João Cabral de Melo Neto vai permanecer. E a seguir penso: quem sabe se não estou enganado? Os critérios de avaliação serão completamente diversos, os motivos que levam as pessoas a aderir a uma obra também, o movimento do gosto incessante. Bach levou cento e cinquenta anos esquecido até ser adoptado pelos românticos. Mas será isto importante, será isto realmente importante? Até que ponto todos os livros, de todos os autores, não formam um único, imenso livro, que principiou a ser escrito muito antes de nós e prosseguirá sem fim, interminável? Perguntas, perguntas. No fundo não me interessam muito: o que eu desejaria era deixar, mais ou menos acabada, a minha casa de palavras, por definição para sempre incompleta. E que o leitor se sentisse justificado e feliz lá dentro, rodeado de vozes que

1 comentário:

  1. Apetece-me dizer a ALA que a lei de Lavazier nao se aplica ao intelecto. Ou estou errado?
    Na naturesza nada se cria, nada se perde tudo se transforma!... Lavazierestava errado... A energia perde-se! Ou sera' que tendo sido usada pode considerarsse transformada em trabalho( lei de Joule)?!
    O intelecto de outrem( escritor) regala-nos o espirito! Que lei se aplica?
    Nao sei. Tenho duvidas.
    Abraco
    diogo

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