sábado, 20 de setembro de 2008

FROM WASHINGTON


HONRA; ALGUÉM SE LEMBRA?

No antigo faroeste americano, os que eram apanhados a fazer batota ao jogo eram despidos de tudo, pintados com alcatrão, cobertos de penas e expulsos da cidade. Hoje recebem milhões de indemnização para se irem embora e eformas vitalícias que são um escândalo público.

1 Há apenas uns meses, o senador McCain, que em Janeiro se poderá tornar o próximo Presidente dos Estados Unidos, afirmava ainda que o governo federal se deveria “manter fora” dos assuntos que tinham que ver com o funcionamento do sector financeiro e do “livre mercado” capitalista. Embora já então fosse mais do que evidente que a chamada crise do «subprime» no sistema financeiro americano estava ainda longe de mostrar o fundo e que o fundo era um lamaçal onde alguns dos mais incensados ‘colarinhos brancos’ dos Estados Unidos estavam atolados em práticas impensáveis de batota e especulação irresponsável, o velho senador mantinha-se ainda atado de pés e mãos à crença de que o capitalismo é conforme à vontade de Deus e que qualquer veleidade de vigilância sobre ele é um erro económico e um atentado aos “valores” da “sociedade liberal”.
Mas esta semana, confrontado com a decisão do Tesouro de injectar 85.000 mil milhões de dólares na AIG para evitar a falência da maior seguradora mundial e o colapso de milhões de pensões de reforma de americanos que trabalharam toda a vida confiando no sistema, McCain teve de rever o seu discurso, embora talvez não as suas convicções. Agora, já veio falar na necessidade de regulação de um sector que revelou “excesso de ganância e de
irresponsabilidade”.
Com dezenas de milhões de votos de pensionistas a serem disputados em Novembro, com o dinheiro dos contribuintes americanos largamente empenhado para salvar a AIG, os dois maiores gigantes do crédito hipotecário e vários bancos entre os quais o sagrado JP Morgan, mesmo o mais doutrinário dos nefastos «neocoms» americanos não pode ignorar esta verdade vexatória: o capitalismo americano, o farol da terra, está a tentar ser salvo pelo Governo dos Estados Unidos com recurso a medidas que fazem lembrar o PREC português, dos anos 70. Só que, se então eram os comunistas que tratavam de nacionalizar a economia por questões ideológicas, agora são os próprios capitalistas a aplicar medidas comunistas para se salvarem a si próprios. Quem paga? Pagam os contribuintes, os que trabalharam em troca de um salário, enquanto os administradores do falido Lehman Brothers recebem milhões a título de prémio de ‘boa gestão’ ou indemnização para se irem embora, depois de terem afundado o navio.
Anos e anos a fio, os ‘liberais’ têm-nos explicado que as empresas têm de crescer, crescer sem limite, para “ganharem dimensão estratégica” numa “economia global”. E os governos tudo têm feito por isso: consentem e estimulam as fusões e aquisições, mesmo sabendo que tal diminui e falseia a concorrência - que é um dos pilares do mercado livre - e que, quando um gigante assim insuflado, como a AIG, tropeça na sua própria dimensão, são milhões de postos de trabalho de gente inocente que vão ser postos em causa e um efeito de cascata que se desencadeia, abalando toda a economia. Bem dizia Marx, que, entregue a si próprio, o capitalismo se devoraria.
O que falhou? Falhou a noção de honra dos capitalistas e a noção de dever dos governantes. Falhou a consciência da responsabilidade social do dinheiro, substituída pela simples ganância de mais e mais lucros, sem olhar sequer a regras de prudência elementares. Vimos como, entre nós, um banco que era apontado como um «case study» de modernidade e inovação, onde mandavam os gestores profissionais e não os accionistas parasitários, se transformou num «case study» de tropelias de toda a ordem, em que o objectivo principal da gestão parecia ser, não o de servir os accionistas, os clientes, os trabalhadores do banco ou a economia nacional, mas sim a luxúria e o desejo de acreditação social dos seus gestores. No antigo faroeste americano, os que eram apanhados a fazer batota ao jogo eram despidos de tudo, pintados com alcatrão, cobertos de penas e expulsos da cidade. Hoje recebem milhões de indemnização para se irem embora e reformas vitalícias que são um escândalo público. Porque, quando a honra deixa de ser um valor na vida em sociedade, a vergonha não pesa nada.
2 Consta que vamos mandar três polícias para a Geórgia. Não vão para dirigir o trânsito nem caçar multas por excesso de velocidade: vão, por mais ridículo que isto seja, para mostrar o nosso compromisso para com o objectivo da NATO de conter o “expansionismo russo” no Cáucaso. Ora, recapitulemos:
- a Geórgia é um dos países que se separaram da órbita da ex-URSS e que, em decorrência da perigosa estratégia de cerco à Rússia, logo recebeu a ajuda do imbecil do Bush para se tornar um satélite dos Estados Unidos, sob uma das três modalidades habitualmente propostas: receber mísseis americanos, aderir à NATO ou ser declarada protegida desta;

- entretanto, o novo país instalou-se sobre um poder formado por seitas mafiosas, totalmente corruptas e criminosas, autêntico paradigma do que é suposto não serem os “valores morais” do Ocidente;

- do novo país fazem parte as regiões autónomas da Abkhazia e Ossétia do Sul, de maioria russa, e que ficaram como enclaves da Geórgia, da mesma forma que o Kosovo, de maioria albanesa, ficou como enclave da Sérvia;

- quando, há meses, os Estados Unidos, a NATO e a UE promoveram a irresponsável declaração de independência unilateral do Kosovo, contra a ONU e com o único fundamento de que a maioria da sua população não era sérvia, Moscovo avisou que estavam a abrir uma caixa de Pandora e todos perceberam que sim e, todavia, foram em frente;

- escorada na protecção dos Estados Unidos e da NATO, a Geórgia resolveu romper o «statu quo» e forçar a anexação pela força das suas zonas russófonas: invadiu a Ossétia, matou indiscriminadamente, bombardeou, destruiu, provocou centenas de milhares ou milhões de refugiados: uma forma muito estranha de tratar o ‘seu povo’. Mas os EUA, a NATO, a UE, mantiveram-se calados. E só reagiram quando Moscovo enviou o Exército em defesa das populações russas e, obviamente, a seguir passou a promover a declaração de independência de ambas as regiões - tal qual como o Kosovo fez. Então, sim, as boas e idiotas almas que nos governam desataram a gritar: ‘Socorro, que o urso está de volta!’. Andam a brincar com o fogo. E nós lá vamos, acompanhando galhardamente o esforço de conter o ‘expansionismo russo’, enviando três polícias para essa coisa que nos é tão íntima, que é o Cáucaso. Mais valia mandarmos três bombeiros.
3 Uma lei especial e antiga estabeleceu que o general Eanes não poderia acumular a sua pensão de reserva como militar com a pensão de ex-Presidente da República. Uma lei estranha, num país em que as grandes figuras do regime acumulam tudo: pensões privadas com pensões públicas, pensões públicas com ordenados privados e pensões públicas com pensões públicas. Sentindo-se discriminado, o general recorreu à justiça, que, muitos anos depois lhe deu razão e mandou que passasse a receber ambas as pensões, mais os retroactivos, cerca de 1.300.000 euros. Eanes, porém, recusou receber os retroactivos. Num país em que tantos exigem e recebem do Estado o que podem e o que não deviam, ele recusou uma pequena fortuna. Não sei as razões, mas conheço suficientemente o homem para perceber a sua motivação. É uma questão de honra. E, nas questões de honra, não basta apregoá-la, é preciso tê-la.

publicação de
João Brito Sousa

2 comentários:

  1. Concordo com artigo.
    Analise inteligente. Parabéns

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  2. Gostei de ler o artigo.
    Concordo com a sua análise.

    Parabéns
    AGabadinho

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