Se eu soubesse dizer-te o que sinto. Se pudesse abrir o peito para tu veres lá dentro, cheio de postais ilustrados, com pombinhos e fitas cor de rosa, um gato a sair de uma bota velha, um menino, mascarado de palhaço, a chorar uma única lágrima, um bambi cromado sobre o naperon, duas rolas de loiça a juntarem os bicos, andorinhas como as que tenho na varanda da casa, envernizadas, tão lindas. Se calhar já não há nada disso, como não há armários de fórmica e mobília de quarto quinane, nem azulejos que dizem Cuidado Com O Cão ou Entra Amigo A Casa é Tua, nem Alziras, nem
Lucindas, nem Custódias, como não há Vítores Manueis nem Edgares, o que o mundo mudou. O Almanaque da Sãozinha onde pára, sonetos de senhoras sensíveis nos jornais. Quando eu era pequeno deram-me um livro de poemas, com o título de Hóstia Florida, escrito por um cónego sensível, chamado Monsenhor Moreira das Neves, que me lembro de ver em casa de uma tia-avó minha, bebendo chás virtuosos, gordo, cheio de opiniões e bondade, muito dado às torradas. Foi a minha primeira grande influência literária e, na minha opinião, o título Hóstia Florida era um achado de génio. Lembro-me do Monsenhor Moreira das Neves declarar, enquanto a minha tia-avó me mostrava a obra com respeito
- Vende-se como pão
e de me surpreender a imagem, vinda de um espírito tão delicado e fino, a apanhar as migalhas da batina com o indicador molhado em cuspo, sob a fotografia emoldurada do doutor Salazar a apertar a mão ao senhor Cardeal Patriarca, unidos num sorriso afectuoso e digno porque se vivia numa época de respeito, avessa ao casamento civil e ao comunismo ateu, duas expressões que não percebia o que significavam mas que, a calcular pela opinião das pessoas responsáveis, eram coisas perigosas e desumanas, que podiam ser evitadas pela leitura da Vida Exemplar De São Luís Gonzaga, acompanhada da história de um outro menino francês que ofereceu a existência em troca da conversão do padrinho, o qual se persignou, ajoelhado, diante da urna e, a partir desse momento, se tornou exemplar e esmoler, outra expressão difícil, dedicado aos leprosos que no princípio do século, ou seja mil e novecentos, mil novecentos e tal, enxameavam Paris, vivendo nas grutas que rodeiam a torre Eiffel e descendo os Campos Elísios de gatas e aos guinchos, cobertos de percevejos e trapos. Ao perguntar ao Monsenhor Moreira das Neves acerca das grutas que envolvem a torre respondeu, sempre a catar migalhas
- De certeza que há mas talvez não sejam assim tantas, para aí umas trinta
e aí temos o motivo de eu não gostar de Paris: imagine-se um leproso atrás de nós a pedir esmola, incapaz de apanhar migalhas porque não tem dedos e refugiando-se depois nas savanas dos Campos Elísios, onde o padrinho exemplar e esmoler lhe oferecia bavaroises e canards à l'orange, que são o equivalente de pão da véspera para nós, a fim de o aliviar das torturas da fome, acrescentado do folheto Preparação Para a Primeira Comunhão, destinado ao ensinamento salutar das almas transviadas. O folheto Preparação Para a Primeira Comunhão ofereceu-mo o senhor Cónego, repleto de ordens úteis: não comer nem beber depois da meia noite para não misturar Jesus com o rosbife, vestir a melhor roupa mas com mangas compridas dado que Deus odeia a carne ao léu, receber a hóstia sem lhe tocar com os dentes
(muita atenção a este ponto)
não a descolar do céu da boca com o mindinho, consentindo apenas que a saliva
(o termo cuspo não é da estima divina)
ajude Jesus a deslizar sem riscos até um estômago devidamente limpo
(estou a citar)
templo interior adequado à recepção da Graça. Para onde é que a Graça ia depois a Preparação não falava, mas presumia-se que não se puxava o autoclismo, no dia seguinte, enviando-a para o Tejo através dos esgotos da Cruz Quebrada: Jesus não era pessoa para trambulhar com o lixo e decerto que se elevava do estômago até à alma através de misteriosos tubos que possuímos cá dentro, destinados ao trajecto barriga-céu sem paragens intermediárias. À questão
- Onde é que eu tenho a alma?
o senhor Cónego elucidava-me designando o tecto com o queixo, para além do tecto o vizinho de cima que batia na mulher, estremecendo o lustre e, para além do vizinho de cima, que trabalhava de contrabandista, ajudando as hóstias a ultrapassarem a fronteira do telhado, a alma à espera de Jesus numa impaciência gulosa, unindo-se num abraço casto
(Não penses em porcarias, miúdo eu que não pensava em porcarias, me maravilhava só)
que nos colocava mais perto de uma eternidade de bem-aventuranças
(O que são bem-aventuranças? Tanta pergunta cansa-me)
cujo significado eu descobriria mais tarde
(Hás-de descobrir isso mais tarde)
quando a experiência da vida me ensinasse
(A experiência da vida há-de ensinar-te, garoto)
a distinguir subtilezas que a minha pouca idade me impedia de visionar
(Visionar quer dizer ver, pateta)
com a clareza que o Espírito Santo não deixa de conferir às pessoas honestas, característica que a avaliar pela generosidade das torradas da minha tia-avó e do seu espírito naturalmente bondoso
(naturalmente bondoso julgo que relacionado com a qualidade do chá Este chá é um primor, minha senhora)
eu herdaria certamente. É possível que tenha herdado o espírito naturalmente bondoso
(item número dezanove do seu testamento: ao meu sobrinho-neto lego o meu espírito naturalmente bondoso)
dado que nem um tostão abichei com a sua morte. Os outros apropincuaram-se com o dinheiro e os tarecos, mas o espírito bondoso já cá canta, só que até hoje não me rendeu fosse o que fosse, a não ser chamares-me
-Parvo
a cada passo e eu, humilde, a escutar-te, pensando se soubesse dizer-te o que sinto, se pudesse abrir o peito para tu veres lá dentro, e os postais ilustrados, os pombinhos, os bambis, os naperons, as rolas, a tralha toda com que te afoguei ao princípio da crónica, tu, aproveitando uma pausa, a comunicares-me
-Não esperes por mim para jantar
pondo, à pressa, mais perfume, visto que a buzina de um automóvel te chama da rua, e o Jorge é suficientemente impulsivo para nos entrar casa dentro.
recolha de
JBS